O Globo, 13/10/2011
TEMA EM DISCUSSÃO: Remoções na política de urbanização
NOSSA OPINIÃO: A DO JORNAL
MEDIDA ESSENCIAL
O Rio paga caro a fatura de uma ocupação desordenada que remonta ao final do século XIX e início do século passado. Começou ali um processo em que a falta de efetivo planejamento do crescimento da cidade juntou-se à, já naquela época, leniência com invasões de terrenos públicos por famílias que eram removidas de áreas incluídas nos projetos de reforma urbanística, principalmente no Centro. Disso decorreram movimentos de reocupação de regiões desprotegidas de fiscalização - fenômeno que, com maior ou menor intensidade, até hoje se repete em praticamente toda a cidade.
A conta da degradação urbanística, decorrente de décadas de falta de vontade política do poder público de intervir nesse processo, sempre chega. Por vezes, a fatura é cobrada pela natureza, geralmente ao custo de vidas humanas, com desabamentos em áreas sabidamente de risco. Outras vezes, em razão da favelização que avança sobre terrenos públicos e privados, a cobrança se apresenta nas dificuldades dos governos de combater agressões ambientais ou de implantar programas de ocupação, crescimento e urbanização planejados.
A essas situações de fato se impõem soluções inevitáveis, ainda que a custo político alto e doloroso a curto prazo, mas inescapável por se tratar de áreas (as favelizadas) onde se concentra um universo de moradores calculado em torno de 20% da população da capital. Entre essas ações, as remoções provocam maiores reações a favor e contra. Em razão de resultados negativos advindos de mal planejadas iniciativas de relocação de famílias na década de 60, críticas populistas ao reassentamento urbano tiveram o dom de, por muitos anos, tornar essa imperiosa solução um tabu nos programas governamentais. Mas, enfim, de alguns anos para cá, o poder público tem se curvado aos interesses maiores do desenvolvimento urbanístico, e voltou a incluir tal medida no manual da administração.
São injustificáveis, inclusive do ponto de vista humanístico, tentativas de conhecidos personagens da vida política de evitar a retirada de famílias de áreas de risco, como tem feito a prefeitura como medida preventiva contra tragédias. E é de se prever que do mesmo front populista partam missões para solapar a recente decisão do município de remover famílias que ocupam, a maioria delas irregularmente, áreas cuja reurbanização é inegociável entre as ações para adaptar o Rio aos compromissos assumidos para sediar jogos da Copa do Mundo e as Olimpíadas.
Neste caso estão as recentemente anunciadas remoções da Vila Autódromo, na Barra da Tijuca, no caminho do futuro Parque Olímpico. Diferentemente de ações de relocação de famílias que, em outras épocas, cevaram a má vontade contra esse fundamental instrumento de urbanização, desta vez a prefeitura estuda com antecedência qual a melhor maneira de reassentar os moradores. Para isso, dispõe, por exemplo do programa Minha Casa Minha Vida. Esse é o caminho.
A cidade tem regiões altamente degradadas. O poder público tem obrigações com a segurança e a qualidade de vida da população, bem como com uma urbanização voltada para o futuro - de resto, a ser impulsionada pela chance histórica de o município se beneficiar das vultosas inversões financeiras decorrentes dos preparativos para os dois grandes eventos esportivos desta década. Nessa realidade, as remoções, feitas com planejamento e uma clara política de reassentamento, são cruciais para ajudar a cidade a superar crônicas demandas urbanísticas.
OUTRA OPINIÃO:
ELIOMAR COELHO
GESTÃO PARA POUCOS
Há anos afirmo que o Rio se tornou refém de um modelo de gestão pública marcado por projetos pontuais, com investimentos voltados para os interesses de poucos, deixando a maioria sem acesso a direitos fundamentais. A favelização é um sintoma complexo desse descaso. A carestia da moradia é um fato inexorável. Numa cidade onde mais da metade da população economicamente ativa sobrevive do trabalho informal, a burocracia do aluguel e a concentração da propriedade levam contingentes inteiros das classes médias e baixas a morar também no informal.
Além de todas essas mazelas, a avalanche de megaeventos e diversos interesses globais conduz o Rio para ser um dos metros quadrados mais caros do mundo, onde um verdadeiro regime de exceção passa a ser implantado na gestão da "res publica".
Por tudo isso, o caso da Vila Autódromo não pode se prender a leituras fundamentalistas e mesquinhas. As remoções de comunidades no Rio caracterizam-se como verdadeiros atentados contra a administração pública, direitos fundamentais da pessoa humana, ao meio ambiente e às boas práticas do planejamento urbano. Não faltam denúncias e investigações, quase sempre paralisadas ou atrapalhadas pelo rápido e fulminante trabalho de blindagem política nas três esferas de governo.
Inúmeros são os exemplos desse regime de exceção implantado no Rio de Janeiro: o novo PEU das Vargens, em 2009, rasgou a Constituição e os direitos urbanísticos e ambientais construídos ao longo de décadas. De tão absurda, essa legislação levou à união de sete vereadores de partidos distintos, numa representação ao Ministério Público Estadual que já redundou numa ação direta de inconstitucionalidade.
A tentativa de instalação da CPI das Remoções, naufragada pela mobilização da bancada governista na Câmara de Vereadores, é outro exemplo cabal dessa conjuntura.
Mais recentemente, a compra do terreno da Tibouchina Empreendimentos, controlada por duas empreiteiras doadoras de campanha do prefeito e de seus prepostos, foi o ápice dessa tentativa de limpeza social das áreas de interesse do mercado imobiliário. Importa pouco se tais relações são legais, pois evidentemente não são morais.
A Vila Autódromo, em parte removida da Zona Sul nos anos 1960 e 1970, teve sua posse reconhecida pelo governo do estado com a concessão de direito real de uso válido por 99 anos. A despeito disso, a prefeitura tem usado e abusado da coação, da tentativa de desqualificar lideranças, ações judiciais e laudos suspeitos. A luta dessa comunidade é muito mais do que manter suas casas e histórias. Trata-se de uma luta pelo estado democrático de direito.
A Vila Autódromo sabe que parte de suas casas está em área ambientalmente protegida e concorda em colaborar para remediar o problema. Porém, a situação geral é perfeitamente passível de regularização urbanística, no próprio local onde estão, a um custo inferior ao da remoção pretendida. Regularização tão prometida: o caderno de Legado Urbano e Ambiental, apresentado ao COI durante a candidatura Rio 2016, afirma que a comunidade seria integrada no projeto das Olimpíadas. Mas o radicalismo ideológico do mercado imobiliário, e de seus aliados eleitorais, não aceita essa hipótese.
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