quarta-feira, 12 de outubro de 2011

COMO JULGAR OS JUÍZES No Brasil?

Revista ÉPOCA, 11/10/2011

ROBERTO DAMATTA 

COMO JULGAR OS JUÍZES?

Temos aqui mais um exemplo de um sistema que quer ser igualitário no ideal, mas continua aristocrático na prática
Um dos inventores da sociologia, Emile Durkheim, dizia que numa sociedade de santos os pecados veniais seriam faltas escandalosas. Como julgar um santo entre santos? E como dentro da espessa tradição legalista do Brasil – uma tradição segundo a qual todos os problemas podem ser resolvidos por decreto e muitos agentes do governo são “blindados” ou vacinados contra a igualdade perante a lei – ilegalizar seus agentes mais importantes: os juízes que lavram a sentença final, encerrando o assunto até que, é óbvio, haja um recurso? Porque, tal como no paraíso e no mundo ideal onde o que conta é o que está formulado nos autos, cabe sempre um apelo para cima ou para baixo.
Como, faz tempo, me disse um sertanejo goiano: todos temos um patrão, e até mesmo o patrão dos patrões também tem patrão. E, como dizem os jornais, só há um magistrado preso. Em cadeia domiciliar e com vencimentos integrais. Essa seria, na prática, a maior punição de um juiz no Brasil.
Num universo onde o legalismo jurídico é a cabeça da administração (outros poderes seriam os braços, outros as pernas ou os pés) e no qual constitucionalidades e inconstitucionalidades são arguidas a todo instante pelo governo e pela oposição, embora a Constituição, ela própria, tenha mudado muitas vezes, como recortar o mundo para situá-lo em algum lugar quando nossa tradição jurídica assevera que ele jamais está onde o colocamos? Como estabelecer a famosa linha amarela que circunscreve um território onde o crime ocorreu e ali demarca o local da investigação?
Cansei de ouvir discussões banais transformadas em debates jurídicos complicados quando alguém, em geral surtado por alguma norma ou regimento, argumentava que o problema estava resolvido porque estava previsto em lei, como manda nossa velha tradição Ibérica e Contrarreformista. O melhor exemplo foi a Lei da Ficha Limpa com a qual nós, o povo, queríamos expurgar criminosos eleitos, mas que os juristas entenderam como algo que afetava o calendário eleitoral. Mal comparando, estávamos querendo jogadores de futebol sem passagem pela prisão, mas muitos entendidos julgaram que estávamos falando da estrutura do campeonato.
Quando se trata de Direito, o leigo não vê problemas onde o especialista – que constrói o mundo pela realidade real da lei – faz uma distinção chocante entre o habitual e o legal. O resultado é que algumas condutas podem ser imorais, mas legais. O costumeiro pode levar à prisão. Assim prescrevemos o roubo dos dinheiros públicos, mas o apanhador de passarinhos é devidamente enjaulado. Já o jogo do bicho, esse brasileirismo, como dizia Gilberto Freyre, um jogo moralmente aprovado e parte da nossa concepção de mundo, é uma contravenção!
O combate crucial entre o Conselho Nacional de Justiça e a Associação dos Magistrados Brasileiros, com ecos no Supremo, lembra o fosso de nossa índole hierárquica, recriado pela Contrarreforma Portuguesa quando fez face à revolução individualista, ampliada e tornada hegemônica com a ética do protestantismo e do calvinismo. Nela, os letrados são parte fundamental do poder. E uma Justiça feita de muitos conselhos presta mais atenção a direitos que a deveres. Hoje, tenta-se impedir o controle do poder dos magistrados pela sociedade, um dado essencial para o bom funcionamento do Judiciário e da democracia. Trata-se de levar adiante (ou não) um processo básico em qualquer sistema burguês e liberal: submeter todos os cargos da República à regra da lei. Mas eis que esbarramos na secular resistência a esse controle da sociedade (representada pelo CNJ) para a qual todos os funcionários públicos devem trabalhar.
O conflito entre o CNJ e a magistratura (e o STF) é um dos vários sintomas de um sistema que claramente combina hierarquia aristocrática e a prevalência da totalidade. Nele, tudo aquilo que diferencia e individualiza, criando conflitos normais em qualquer sistema igualitário, é lido como crise. A todo momento, ideais republicanos como a liberdade e a igualdade chocam-se com a pesada carga hierárquica e aristocrática que governa por meio de leis, portarias, marcos regulatórios e decretos – autoritariamente. Trata-se do fantasma do velho Portugal, onde o Poder Executivo englobou nobres e burgueses e inventou procuradores, ouvidores, curadores, desembargadores e corregedores com sua notória hipersensibilidade ao esquema republicano constituído de uma trindade de poderes em equilíbrio instável e permanente. Outro ponto importante desse conflito é o surgimento da velha dualidade entre a sociedade, com seus costumes e tradições (tidas por quase todos os intérpretes do Brasil como equivocadas, senão doentias – as tais “taras e origem”), e o Estado, que, forte, culto e bem aparelhado, iria europeizá-la, embranquecendo-a e civilizando-a por meio de regras, decretos, constituições e – eis o ponto-chave que cabe discutir e politizar – funcionários especiais que, sendo autores das leis, delas podiam escapar. Seja por meio de laços de família, seja por meio de provisões legais contidas no próprio cargo que era apropriado e se confundia com seu ocupante, como é o caso exemplar dos magistrados.
Não há a menor dúvida de que temos aqui mais um estertor de um sistema que escolheu ser igualitário no ideal, mas que, na prática, continua querendo ser aristocrático; que, no céu, tem um regime legal que vale para todos, mas ainda hesita em suprimir cláusulas que excepcionalizam cargos, protegendo seus ocupantes e dando-lhes privilégios de nobreza na terra. Tal nobilização – que torna certos funcionários filhos diletos do Estado e do governo, contra toda a onda universalista das mais diversas igualdades, da moeda única e consistente até a meritocracia e a competição regrada, sem esquecer, é claro, o tratamento dos opositores políticos como adversários, e não mais como inimigos – conduz à pressão para suprimir esses dois pesos e medidas para que a imprensa e os observadores mais atentos, bem como um ou dois estudiosos do sistema, têm chamado a atenção. Impossível ter liberalismo sem igualdade. Impossível a igualdade sem a submissão de todos os cargos à regra da lei. Impossível, ainda, perseguir esse ideal não discutindo a separação entre cargos e pessoas; entre os papéis que são da sociedade e seus eventuais ocupantes. Tomando partido da igualdade como valor e ideal que não impede, mas dificulta o uso de éticas aristocráticas em plena república.
Caso contrário, estaremos fadados a repetir a paródia mencionada por um notável especialista em história social do Direito, Harold Berman. Nela, uma autoridade em lei e teologia islâmica, um mulá (cargo equivalente a ministro do STF), ouve uma disputa e, diante dos belos argumentos do reclamante, sentencia: “Creio que você tem razão”. Ouve, a seguir, a defesa e, novamente encantado, exclama: “Acredito que você está certo”. Horrorizado, o escrivão lembra que “ambos não podem estar certos”. Ao que o mulá responde dizendo: “Você também está certo!”.
Tal e qual no Brasil antigo que precisa mudar, é impossível aceitar a velha (mas tradicional) resposta, segundo a qual todos têm razão. Seja porque são amigos ou porque, como se diz entre nós, todos “têm o rabo preso”. O que está em pauta no momento é a dificuldade de fazer justiça salvando a honra senão dos mais importantes, senão de todos os implicados. E, para isso, temos de escolher entre blindar certos cargos aristocratizando-os ou seguir a norma da igualdade que impede usar dois pesos e duas medidas.
 
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