terça-feira, 7 de julho de 2009

COTAS: PORQUE MUDEI DE OPINIÃO, William Douglas, juiz federal (RJ)

William Douglas, juiz federal (RJ), mestre em Direito (UGF),
especialista em Políticas Públicas e Governo (EPPG/UFRJ), professor e
escritor, caucasiano e de olhos azuis.

Roberto Lyra, Promotor de Justiça, um dos autores do Código Penal de
1940, ao lado de Alcântara Machado e Nelson Hungria, recomendava aos
colegas de Ministério Público que "antes de se pedir a prisão de
alguém deveria se passar um dia na cadeia". Gênio, visionário e à
frente de seu tempo, Lyra informava que apenas a experiência viva
permite compreender bem uma situação.

Quem procurar meus artigos, verá que no início era contra as cotas
para negros, defendendo - com boas razões, eu creio - que seria mais
razoável e menos complicado reservá-las apenas para os oriundos de
escolas públicas. Escrevo hoje para dizer que não penso mais assim. As
cotas para negros também devem existir. E digo mais: a urgência de sua
consolidação e aperfeiçoamento é extraordinária.

Embora juiz federal, não me valerei de argumentos jurídicos. A
Constituição da República é pródiga em planos de igualdade, de
correção de injustiças, de construção de uma sociedade mais justa.
Quem quiser, nela encontrará todos os fundamentos que precisa. A
Constituição de 1988 pode ser usada como se queira, mas me parece
evidente que a sua intenção é, de fato, tornar esse país melhor e mais
decente. Desde sempre as leis reservaram privilégios para os
abastados, não sendo de se exasperarem as classes dominantes se, umas
poucas vezes ao menos, sesmarias, capitanias hereditárias, cartórios e
financiamentos se dirigirem aos mais necessitados.

Não me valerei de argumentos técnicos nem jurídicos dado que ambos os
lados os têm em boa monta, e o valor pessoal e a competência dos
contendores desse assunto comprovam que há gente de bem, capaz, bem
intencionada, honesta e com bons fundamentos dos dois lados da cerca:
os que querem as cotas para negros, e os que a rejeitam, todos com
bons argumentos.

Por isso, em texto simples, quero deixar clara minha posição como
homem, cristão, cidadão, juiz, professor, "guru dos concursos" e
qualquer outro adjetivo a que me proponha: as cotas para negros devem
ser mantidas e aperfeiçoadas. E meu melhor argumento para isso é o
aquele que me convenceu a trocar de lado: "passar um dia na cadeia".
Professor de técnicas de estudo, há nove anos venho fazendo palestras
gratuitas sobre como passar no vestibular para a EDUCAFRO,
pré-vestibular para negros e carentes.

Mesmo sendo, por ideologia, contra um pré-vestibular "para negros",
aceitei convite para aulas como voluntário naquela ONG por entender
que isso seria uma contribuição que poderia ajudar, ou seja, aulas,
doação de livros, incentivo. Sempre foi complicado chegar lá e dizer
minha antiga opinião contra cotas para negros, mas fazia minha parte
com as aulas e livros. E nessa convivência fui descobrindo que se ser
pobre é um problema, ser pobre e negro é um problema maior ainda.

Meu pai foi lavrador até seus 19 anos, minha mãe operária de "chão de
fábrica", fui pobre quando menino, remediado quando adolescente. Nada
foi fácil, e não cheguei a juiz federal, a 350.000 livros vendidos e a
fazer palestras para mais de 750.000 pessoas por um caminho curto, nem
fácil. Sei o que é não ter dinheiro, nem portas, nem espaço. Mas tive
heróis que me abriram a picada nesse matagal onde passei. E conheço
outros heróis, negros, que chegaram longe, como Benedito Gonçalves,
Ministro do STJ, Angelina Siqueira, juíza federal. Conheço vários
heróis, negros, do Supremo à portaria de meu prédio.

Apenas não acho que temos que exigir heroísmo de cada menino pobre e
negro desse país. Minha filha, loura e de olhos claros, estuda há três
anos num colégio onde não há um aluno negro sequer, onde há
brinquedos, professores bem remunerados, aulas de tudo; sua similar
negra, filha de minha empregada, e com a mesma idade, entrou na escola
esse ano, escola sem professores, sem carteiras, com banheiro
quebrado. Minha filha tem psicóloga para ajudar a lidar com a
separação dos pais, foi à Disney, tem aulas de Ballet. A outra, nada,
tem um quintal de barro, viagens mais curtas. A filha da empregada,
que ajudo quanto posso, visitou minha casa e saiu com o sonho de ter
seu próprio quarto, coisa que lhe passou na cabeça quando viu o quarto
de minha filha, lindo, decorado, com armário inundado de roupas de
princesa. Toda menina é uma princesa, mas há poucas das princesas
negras com vestidos compatíveis, e armários, e escolas compatíveis,
nesse país imenso. A princesa negra disse para sua mãe que iria orar
para Deus pedindo um quarto só para ela, e eu me incomodei por lembrar
que Deus ainda insiste em que usemos nossas mãos humanas para fazer
Sua Justiça. Sei que Deus espera que eu, seu filho, ajude nesse
assunto. E se não cresse em Deus como creio, saberia que com ou sem um
ser divino nessa história, esse assunto não está bem resolvido. O
assunto demanda de todos nós uma posição consistente, uma que não se
prenda apenas à teorias e comece a resolver logo os fatos do
cotidiano: faltam quartos e escolas boas para as princesas negras, e
também para os príncipes dessa cor de pele.

Não que tenha nada contra o bem estar da minha menina: os avós e os
pais dela deram (e dão) muito duro para ela ter isso. Apenas não acho
justo nem honesto que lá na frente, daqui a uma década de
desigualdade, ambas sejam exigidas da mesma forma. Eu direi para minha
filha que a sua similar mais pobre deve ter alguma contrapartida para
entrar na faculdade. Não seria igualdade nem honesto tratar as duas da
mesma forma só ao completarem quinze anos, mas sim uma desmesurada e
cruel maldade, para não escolher palavras mais adequadas.

Não se diga que possamos deixar isso para ser resolvido só no ensino
fundamental e médio. É quase como não fazer nada e dizer que tudo se
resolverá um dia, aos poucos. Já estamos com duzentos anos de espera
por dias mais igualitários. Os pobres sempre foram tratados à margem.
O caso é urgente: vamos enfrentar o problema no ensino fundamental,
médio, cotas, universidade, distribuição de renda, tributação mais
justa e assim por diante. Não podemos adiar nada, nem aguardar nem um
pouco.

Foi vendo meninos e meninas negros, e negros e pobres, tentando uma
chance, sofrendo, brilhando nos olhos uma esperança incômoda diante de
tantas agruras, que fui mudando minha opinião. Não foram argumentos
jurídicos, embora eu os conheça, foi passar não um, mas vários "dias
na cadeia". Na cadeia deles, os pobres, lugar de onde vieram meus
pais, de um lugar que experimentei um pouco só quando mais moço. De
onde eles vêm, as cotas fazem todo sentido.

Se alguém discorda das cotas, me perdoe, mas não devem faze-lo olhando
os livros e teses, ou seus temores. Livros, teses, doutrinas e leis
servem a qualquer coisa, até ao nazismo. Temores apenas toldam a visão
serena. Para quem é contra, com respeito, recomendo um dia "na
cadeia". Um dia de palestra para quatro mil pobres, brancos e negros,
onde se vê a esperança tomar forma e precisar de ajuda. Convido todos
que são contra as cotas a passar conosco, brancos e negros, uma tarde
num cursinho pré-vestibular para quem não tem pão, passagem, escola,
psicólogo, cursinho de inglês, ballet, nem coisa parecida, inclusive
professores de todas as matérias no ensino médio.

Se você é contra as cotas para negros, eu o respeito. Aliás, também
fui contra por muito tempo. Mas peço uma reflexão nessa semana: na
escola, no bairro, no restaurante, nos lugares que freqüenta, repare
quantos negros existem ao seu lado, em condições de igualdade (não
vale porteiro, motorista, servente ou coisa parecida). Se há poucos
negros ao seu redor, me perdoe, mas você precisa "passar um dia na
cadeia" antes de firmar uma posição coerente não com as teorias (elas
servem pra tudo), mas com a realidade desse país. Com nossa realidade
urgente. Nada me convenceu, amigos, senão a realidade, senão os
meninos e meninas querendo estudar ao invés de qualquer outra coisa,
querendo vencer, querendo uma chance.

Ah, sim, "os negros vão atrapalhar a universidade, baixar seu nível",
conheço esse argumento e ele sempre me preocupou, confesso. Mas os
cotistas já mostraram que sua média de notas é maior, e menor a média
de faltas do que as de quem nunca precisou das cotas. Curiosamente,
negros ricos e não cotistas faltam mais às aulas do que negros pobres
que precisaram das cotas. A explicação é simples: apesar de tudo a
menos por tanto tempo, e talvez por isso, eles se agarram com tanta fé
e garra ao pouco que lhe dão, que suas notas são melhores do que a
média de quem não teve tanta dificuldade para pavimentar seu chão.
Somos todos humanos, e todos frágeis e toscos: apenas precisamos dar
chance para todos.

Precisamos confirmar as cotas para negros e para os oriundos da escola
pública. Temos que podemos considerar não apenas os deficientes
físicos (o que todo mundo aceita), mas também os econômicos, e dar a
eles uma oportunidade de igualdade, uma contrapartida para caminharem
com seus co-irmãos de raça (humana) e seus concidadãos, de um país que
se quer solidário, igualitário, plural e democrático. Não podemos ter
tanta paciência para resolver a discriminação racial que existe na
prática: vamos dar saltos ao invés de rastejar em direção a políticas
afirmativas de uma nova realidade.

Se você não concorda, respeito, mas só se você passar um dia conosco
"na cadeia". Vendo e sentindo o que você verá e sentirá naquele meio,
ou você sairá concordando conosco, ou ao menos sem tanta convicção
contra o que estamos querendo: igualdade de oportunidades, ou ao menos
uma chance. Não para minha filha, ou a sua, elas não precisarão ser
heroínas e nós já conseguimos para elas uma estrada. Queremos um
caminho para passar quem não está tendo chance alguma, ao menos chance
honesta. Daqui a alguns poucos anos, se vierem as cotas, a realidade
será outra. Uma melhor. E queremos você conosco nessa história.

Não creio que esse mundo seja seguro para minha filha, que tem tudo,
se ele não for ao menos um pouco mais justo para com os filhos dos
outros, que talvez não tenham tido minha sorte. Talvez seus filhos
tenham tudo, mas tudo não basta se os filhos dos outros não tiverem
alguma coisa. Seja como for, por ideal, egoísmo (de proteger o mundo
onde vão morar nossos filhos), ou por passar alguns dias por ano "na
cadeia" com meninos pobres, negros, amarelos, pardos, brancos, é que
aposto meus olhos azuis dizendo que precisamos das cotas, agora.

E, claro, financiar os meninos pobres, negros, pardos, amarelos e
brancos, para que estudem e pelo conhecimento mudem sua história, e a
do nosso país comum pois, afinal de contas, moraremos todos naquilo
que estamos construindo.

Então, como diria Roberto Lyra, em uma de suas falas, "O sol nascerá
para todos. Todos dirão - nós - e não - eu. E amarão ao próximo por
amor próprio. Cada um repetirá: possuo o que dei. Curvemo-nos ante a
aurora da verdade dita pela beleza, da justiça expressa pelo amor."

Justiça expressa pelo amor e pela experiência, não pelas teses. As
cotas são justas, honestas, solidárias, necessárias. E, mais que tudo,
urgentes. Ou fique a favor, ou pelo menos visite a cadeia.

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