quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Uma lei educacional que destinava os negros a trabalhos subalternos

Apartheid, em preto e branco


Por: Celia W. Dugger


JOHANNESBURGO - Antes mesmo dos 30 anos, Ernest Cole, um fotógrafo que mal atingia 1,50 metro de altura, criou um dos mais perturbadores registros pictóricos de como era ser negro na África do Sul do apartheid. Ele se exilou em 1966, e, no ano seguinte, seu trabalho foi publicado em livro nos EUA, mas suas fotos foram banidas no seu próprio país, onde ele e sua obra continuaram quase desconhecidos.
Durante parte das décadas de 1970 e 80, Cole viveu como sem-teto em Nova York. Morreu aos 49 anos, em 1990, apenas uma semana depois de Nelson Mandela ser libertado.
Sua irmã levou suas cinzas de volta para a África do Sul.
Agora, finalmente, Cole está tendo uma recepção digna em seu país. A maior retrospectiva já realizada da sua obra está em exposição na Johannesburg Art Gallery, um edifício neoclássico construído há quase cem anos, numa era em que a mineração gerava grandes fortunas para a África do Sul, graças à mão de obra negra. As fotos ainda possuem força para chocar e indignar.
"Como os brancos podiam fazer isso com a gente?", perguntava Lebogang Malebana, 14, diante de uma foto de candidatos a garimpeiros sendo levados, nus, para exames num cômodo imundo. "Como eles podiam exibir homens negros nus desse jeito?".
Lebogang está na oitava série. Sua mãe é empregada doméstica; seu pai está preso. "É muito triste", disse ele ao passar diante das fotos em preto e branco.
"Eu sinto raiva", disse Jimmy Phindi Tjege, 27, que, como muitos jovens sul-africanos negros, nunca teve emprego.
"Esta sala está cheia de raiva", acrescentou, apontando a galeria.
Emoções dilacerantes dominam as legendas e as fotos de Cole. Numa foto, uma empregada segura um bebê branco, cujos lábios tocam a testa da mulher. Diz a legenda: "Criados não são proibidos de amar; a mulher que segura a criança disse: Amo esta criança, embora ela crescerá para me tratar como sua mãe me trata".
No ano que vem, a exposição vai para Pretória, onde a família de Cole ainda vive, e para outras cidades sul-africanas. Uma turnê pelos EUA também está planejada.
Filho de uma lavadeira e de um alfaiate, Cole deixou o colégio em 1957, aos 16 anos, quando entrou em vigor uma lei educacional que destinava os negros a trabalhos subalternos.
Aos 20 anos, o governo demoliu o subúrbio negro onde sua família morava. Nessa época, fingindo-se de órfão, ele já havia conseguido convencer os burocratas do apartheid a reclassificá-lo como "coloured" (mestiço), apesar da sua pele escura. A capacidade de se passar por mestiço lhe deu uma mobilidade crucial para sua fotografia.
Em meados dos anos 70, Cole, na miséria em Nova York, perdeu suas fotos e negativos em um leilão de itens desprezados.
Durante anos, circularam rumores de que cópias haviam sobrevivido na Suécia. Quando o fotógrafo sul-africano David Goldblatt ganhou o Prêmio Hasselblad em 2006, ele viajou a Gotemburgo (Suécia) para recebê-lo e teve acesso às imagens. "Elas não podem ficar num cofre", afirmou.
A Fundação Hasselblad organizou a exposição.
"Ele não era simplesmente corajoso", disse Goldblatt. "Ele não era simplesmente empreendedor. Ele era um fotógrafo maravilhoso."

Fonte: Folha de S. Paulo

Nenhum comentário: