sábado, 4 de dezembro de 2010

Tradição de isolamento das comunidades pobres cariocas

*DIVULGANDO*

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Na sessão ordinária desta segunda-feira (29.11), na Câmara, o deputado Edson
comentou a triste tradição de isolamento das comunidades pobres cariocas,
relacionando-a à questão do Horto Florestal. Confira o discurso na íntergra.

Senhor presidente, nobres colegas,

No Rio de Janeiro, lamentavelmente, existe uma triste tradição de expulsar
os pobres de uma determinada área quando chega à mesma o desenvolvimento
econômico. Foi assim no Bota Abaixo do prefeito Pereira Passos, no início do
século passado, quando centenas de casas e cortiços foram demolidos para a
abertura da Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco, principal via do
Centro da cidade. E foi assim na remoção das favelas no entorno da Lagoa
Rodrigo de Freitas, como a favela da Praia do Pinto, que deu lugar ao
condomínio Selva de Pedra, dentre muitos outros exemplos que poderiam ser
citados.

Uma honrosa exceção foi o conjunto habitacional Cruzada São Sebastião,
concebida e construída pelo saudoso Dom Hélder Câmara, então
secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em 1955.

No mais, movida pela força do mercado imobiliário, a cidade criou um enorme
tapete de concreto, pastilha e blindex, para debaixo do qual são varridos
seu pobres. Que não foram, em nenhuma dessas ocasiões, reassentados em áreas
próximas de seus locais de trabalho e convivência social. Mas removidos
forçosamente para regiões longínquas e sem infra-estrutura, como Vila
Kennedy e Cidade de Deus, e mais recentemente para Nova Sepetiba, muito
longe dos cartões postais do Rio. A palavra de ordem era limpar etnicamente
a cidade, e assim “purificá-la” de seus pobres.

O efeito desta política de remoções foi catastrófico. E até hoje o Rio sofre
com a condição de cidade partida, que é ao mesmo tempo um entrave para a
superação de suas desigualdades sociais e a mola propulsora da violência
urbana carioca – hoje uma marca da cidade tão forte quanto o Corcovado, o
Pão-de-Açúcar e o estádio do Maracanã.

Por conta destas consequências nefastas, a maioria dos governantes que
vieram depois de Carlos Lacerda e Negrão de Lima, estivessem eles à esquerda
ou à direita, colocaram de lado as remoções. E as favelas passaram a ser
vistas como territórios a serem incorporados à cidade, devendo o Estado
dotá-los de infra-estrutura e promover a melhoria da qualidade de vida de
seus moradores. Esta nova postura foi ratificada pela Constituição Federal
de 1988, a partir da qual o direito à moradia revestiu-se das
características de um direito fundamental, pois se trata, sobretudo, de um
direito da dignidade humana, de acesso à habitação, de ocupar um espaço no
qual os frutos das políticas públicas sejam distribuídos de forma equânime,
“sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação”.

O Plano Diretor do Município do Rio de Janeiro, também reconhece a
necessidade de uma nova visão da política fundiária para as favelas, não
mais as excluindo, mas criando instrumentos para sua regularização e
urbanização.

Como todos sabemos, estes objetivos ainda estão longe de serem alcançados.
Mas, ao menos, houve uma mudança de paradigma que desde então vem impedindo
que a exclusão social seja aplicada enquanto política oficial do Estado. Até
mesmo a terminologia mudou, e as favelas deixaram de ser favelas para se
tornarem comunidades.

Os temporais de abril deste ano, no entanto, levaram enconsta abaixo muito
mais do que pedras, barrancos e barracos. Derrubaram o tabú que se
constituiu em torno das remoções. Pois ao passo em que a Prefeitura da
Cidade acertadamente providenciou o reassentamento das famílias que ocupavam
áreas sob risco de enchentes e deslizamentos, alguns setores mais
reacionários da elite carioca reacenderam seu fervor udenista e voltaram a
defender sem falsos pudores a remoção completa de comunidades inteiras.
Notadamente daquelas localizadas nas áreas mais valorizadas da cidade.

Pautada por preconceitos que apenas diminuem a importância do tema, volta a
ganhar corpo a idéia de que a comunidade é o espaço da pobreza e que é
preciso separá-la da sociedade. Quando, ao contrário, deveríamos estar
definindo políticas de aproximação e soluções capazes de se manter no longo
prazo.

A lógica autoritária das remoções colocaram sob ataque a bicentenária
comunidade do Horto Florestal, encravada na Zona Sul do Rio, área de forte
interesse imobiliário que, no caso, se traveste de uma falsa defesa do meio
ambiente para alcançar seus objetivos.

Para se ter uma perfeita compreensão do conflito que hoje opõe os moradores
do Horto à atual administração do Instituto Jardim Botânico, é necessário
colocar a questão em perspectiva histórica.

Em 1578 a região já era habitada pelos trabalhadores – negros escravizados –
de dois engenhos de cana ali instalados, que mais tarde viriam a se
converter em fazendas de café. Ainda hoje há monumentos reveladores desta
remota época, como os aquedutos tipicamente coloniais e algumas construções
de cujos vestígios se insinuam ruínas de senzalas.

A segunda onda populacional ocorreu em 1808, quando D. João VI desapropriou
o Engenho de Nossa Senhora da Conceição da Lagoa, de propriedade de Rodrigo
de Freitas, para a construção de uma fábrica de pólvora, e alguns meses mais
tarde fundou o Real Horto, atualmente conhecido como Instituto Jardim
Botânico. Como era costumeiro na época, os trabalhadores da fábrica e do
parque foram convidados a residir nas proximidades. Assim, gerações de
famílias de funcionários e seus descendentes constituíram uma comunidade com
autorização formal e informal de sucessivas administrações do Jardim
Botânico e do Ministério da Agricultura, instância de poder a qual o Horto
Florestal estava subordinado na época.

A noção de pertencimento desta comunidade impediu a deterioração da área e
garantiu sua preservação, uma vez que as famílias estão altamente integradas
àquele meio ambiente, dentro de padrões de sustentabilidade. Durante anos,
os moradores do Horto vêm cuidando desta localidade como extensão de suas
vidas, impedindo, inclusive, a implantação de projetos de grande impacto
sócio-ambiental, como a construção do cemitério Santa Catarina de Siena – de
iniciativa do então governador Carlos Lacerda – e de um conjunto residencial
do BNH, de 35 blocos de 6 andares cada, ambos projetos da década de 1960.

Temos casos, como o de Dona Conceição, 80 anos, matriarca viva da família
Marins Maciel, nascida na localidade, cujos avós já trabalhavam e moravam
ali, remontando a uma ancestralidade com mais de 120 anos. São essas
pessoas, com raízes profundas na área, as que mais contribuíram para a
construção do bairro, do Parque Jardim Botânico e para a preservação da
enorme área verde em seu entorno. Mas sua casa, atrás do Aqueduto da Levada,
é hoje umas das mais assediadas pela administração do mesmo Parque para a
“reintegração de posse”.

Não se trata de uma invasão, como quer fazer crer o senhor Lizst Vieira,
atual administrador do Jardim Botânico, em defesa de interesses
incofessáveis.

O relato do jornalista Roberto Magessi, que é secretário executivo do
Conselho do Parque Nacional da Tijuca, é revelador neste sentido. Magessi é
bisneto e tataraneto de dois antigos administradores do Parque, numa
linhagem familiar há 120 anos dedicada à preservação da Floresta da Tijuca.
Ele conhece e tem acesso há vários estudos que comprovam a legitimidade dos
moradores do Horto em sua luta por moradia. E após confrontar o Código
Florestal com o Estatuto das Cidades, a Lei Orgânica do Município, a Lei da
Mata Atlântica e a Constituição Federal, concluiu que:

Primeiro – A comunidade do Horto nunca foi uma ameaça para os limites do
Parque Nacional da Tijuca;

Segundo – A comunidade ocupa uma área destinada à moradia há mais de um
século e, portanto, não promoveu desmatamento algum;

Terceiro – A comunidade cresceu numa proporção infinitamente menor do que a
cidade e do que o bairro do Jardim Botânico;

Quarto – A comunidade colaborou com a recuperação e protegeu toda a área de
amortecimento do Parque Nacional da Tijuca. E que só existe verde nesse
espaço porque a comunidade protegeu e plantou, vide as áreas degradadas
pelos condomínios que, juntas, destruíram em poucos anos um espaço 18 vezes
superior à área da comunidade. A lógica, portanto, está invertida.

Quinto – O Jardim Botânico não é uma unidade de conservação, mas de
pesquisa, tarefa que há muito não vem exercendo. Basta um breve diálogo com
seus pesquisadores para perceber que a prática comercial se tornou o carro
chefe do Instituto, com a criação de espaços musicais, restaurantes,
estacionamentos e sedes de empresas, numa atitude adversa às normas de uma
pretensa unidade de conservação.

Sexto – A área em questão nunca pertenceu ao Jardim Botânico, que por sinal
não é regularizado. É área da União destinada historicamente à moradia.

E para concluir, Magesssi afirma que “Tentar criminalizar ambientalmente a
comunidade do Horto é desviar do problema real e usar os mais pobres como
boi-de-piranha para a passagem da boiada da especulação imobiliária”.

Especificamente em relação às fronteiras da comunidade com o Instituto
Jardim Botânico, cabe esclarecer que os limites do Parque se modificaram
bastante nos últimos anos, em especial, durante a gestão do Sr. Lizst Vieira
e equipe. O núcleo do Caxinguelê, por exemplo, que faz fronteira com o
Instituto, permanece onde esteve nos últimos 60 anos. Nem um centímetro se
avançou na direção do arboreto. Ao contrário, esse se expandiu
territorialmente a ponto de derrubar metade do campus da Escola Municipal
Julia Kubitschek, construída e inaugurada em 1961 pelo presidente Juscelino
no Horto. Portanto, se hoje o parque disputa espaço com o Caxinguelê é
devido ao seu próprio avanço.

O Caxinguelê, que ficou estigmatizado pela imprensa como comunidade
invasora, surgiu no final da década de 1950, quando o então diretor Paulo
Campos Porto convidou os funcionários do Parque e do Horto, que residiam em
sua maioria na região do Grotão, para construirem suas casas mais perto do
trabalho. A própria administração do Jardim Botânico desenhou uma planta de
assentamento de casas a serem doadas para aqueles trabalhadores, as quais
foram levantadas com o suor de seus corpos e captação de materiais a partir
de seu próprio sacrifício.

Sobre as casas que existem dentro da área do Parque, situadas à Rua Pacheco
Leão, cabe destacar que, de acordo com a historiadora Laura Olivieri
Carneiro de Souza, coordenadora do Museu do Horto, as mesmas foram cedidas
pelo diretor Paulo Campos Porto a dois vigias a fim de favorecer a
vigilância em tempo integral na fronteira do Parque. Esses moradores, tão
injustamente taxados de invasores, deveriam ser devidamente honrados por
terem contribuído com a gestão do Parque em administrações anteriores.

Após décadas de disputas judiciais, a Secretaria de Patrimônio da União,
órgão subordinado ao Ministério do Planejamento que tem como função cuidar
dos próprios da União em todo o país, resolveu regularizar a situação
fundiária dos moradores do Horto. Em nota, o órgão esclarece que “está em
curso a regularização fundiária de interesse social que inclui tanto a
regularização das famílias de baixa renda quanto a dos limites do próprio
Instituto Jardim Botânico do Rio de Janeiro”, e que conta com o apoio da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de
Janeiro.

É perfeitamente possível conciliar a permanência dos moradores do Horto
Florestal com a expansão da área de visitação do Jardim Botânico. E é isso
que a SPU propõe, reassentando em localidade próxima as pessoas que hoje
ocupam imóveis em situação de risco ou construídos na área atualmente
abrangida pelo arboreto – em área próxima, e não em Nova Sepetiba, como
chegou a defender o presidente do Jardim Botânico.

Lizst Vieira e seus aliados, no entanto, refutam o diálogo, insistem em
qualificar os moradores como “invasores” e “ilegais”, e defendem a remoção
de todas as casas sem qualquer entendimento com as famílias, colocando as
mesmas sob estado permanente de tensão. O que demonstra o enorme rancor
social que os incapacita de aceitar a convivência harmônica entre pobres e
ricos na região. Pois, aparentemente, a eles não causam incômodo os clubes e
condomínios de alto padrão que ocupam a mesma área.

Apesar de todas as manifestações de intolerância, a comunidade continua
disposta ao diálogo, pois, em nosso entendimento, a questão pode ser
exemplar para o Rio de Janeiro, rompendo com a tradição de isolamento dos
pobres por ocasião da chegada do desenvolvimento.

Era o que eu tinha a dizer, senhoras e senhores, muito obrigado.

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