quarta-feira, 23 de junho de 2010

Catacumba antes da remoção em 1970

Fantasma exorcizado
25/03/2003 - Marcelo Monteiro

Catacumba antes da remoção em 1970

Se hoje o tráfico de drogas, a violência policial e as balas perdidas tiram o sono dos moradores de favelas, até meados dos anos 70 o grande pesadelo nas comunidades era o fantasma das remoções. A idéia de deixar casa, amigos e ir morar a 30 quilômetros do Centro da cidade assustava. Principalmente para quem morava na Zona Sul, área nobre do Rio. "Foi difícil me acostumar com o subúrbio. Chorei muito na hora de ir embora", confessa Margarida Siqueira da Silva, ex-moradora da Favela da Catacumba, onde foi criada. Ela viu a comunidade ser demolida em 1970 para a construção de apartamentos de luxo na Lagoa Rodrigo de Freitas. "Todos os meus amigos moravam na Catacumba", lembra Margarida.

No auge da ditadura militar, o Governo Federal criou um órgão chamado Coordenação da Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio (Chisam), que tinha como objetivo principal acabar com todas as favelas da cidade num prazo máximo de dez anos. De 1968 até 75, cerca de 100 comunidades foram destruídas e mais de 150 mil pessoas removidas.


Margarida (D) teve que deixar a Catacumba

“Houve pressão externa e também muita especulação imobiliária. Políticos e construtoras tinham interesse na 'desfavelização' da Zona Sul. A verdade é que foi uma questão de jogar o problema para longe. Todos os conjuntos habitacionais construídos nessa época depois se transformaram em guetos”, afirma o sociólogo José Artur Rios, Coordenador de Serviço Social do governo Carlos Lacerda e autor de um dos primeiros estudos sobre favelas, nos anos 60.

Essa política remocionista rende até hoje muita polêmica entre pesquisadores e ex-moradores das favelas atingidas. Alguns dos principais líderes comunitários teriam sido cooptados pelo governo para ajudar no processo de cadastramento e na logística das mudanças. “O Estado passou a criar mecanismos de coação, troca de favores. Algumas associações foram inclusive criadas pela própria Prefeitura para facilitar as remoções. Pobre nessa época não tinha direitos, basta lembrar que os analfabetos não votavam”, argumenta Marcelo Baumann Burgos, professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC e autor do estudo Dos Parques Proletários ao Favela-Bairro, publicado no livro Um Século de Favela, organizado pelos pesquisadores Alba Zaluar e Marcos Alvito. “Gostaria de saber mais sobre os líderes comunitários dessa época que foram desmobilizados. Muitos desapareceram. Os políticos acreditavam que as favelas eram focos de comunistas”.

Problema ou solução?


Segundo Burgos, houve coação

Um dos casos mais polêmicos foi a remoção, feita pelo Estado, da Favela da Praia do Pinto, que ocupou até 1968 um local nobre da Zona Sul carioca, ao lado do Clube do Flamengo, onde hoje existe o condomínio Selva de Pedra, no Leblon. A dona de casa Maria Rosa de Souza Noronha, ex-moradora da Praia do Pinto, deixou a comunidade uma semana antes do incêndio (de "causas ignoradas"), que destruiu centenas de barracos e apressou o término da operação de remoção.

"Os moradores que ainda estavam lá disseram que o incêndio foi proposital. A Prefeitura queria que todos saíssem o mais rápido possível e muita gente perdeu tudo no incêndio”, revela Maria, que hoje vive num pequeno barraco na Favela Nova Holanda, no Complexo da Maré. Há relatos, inclusive, de que os moradores tentaram chamar os bombeiros e não foram atendidos. Resultado: dias depois, toda a favela estava abaixo.

Criada cinco anos antes do incêndio da Praia do Pinto, a Federação da Associação de Favelas do Estado da Guanabara (Fafeg) era, na época, o principal órgão de organização de comunidades pobres. Os principais líderes da Fafeg lutaram com unhas e dentes para evitar as remoções. Mas chegou um momento em que perceberam que não poderiam resistir à força dos militares. "Depois do Pasmado e do incêndio da Praia do Pinto, todas as outras remoções foram pacíficas. Nessa época a ditadura já estava estabelecida e os militares tinham muita força", esclarece Abdias José dos Santos, presidente do Conselho Deliberativo da Fafeg, que foi preso junto com toda diretoria da entidade dias antes do bota abaixo da Praia do Pinto.


Morro do Pasmado: caso de remoção forçada

"Ficamos vinte dias presos no Dops. Foi uma maneira também de pressionar outras lideranças. Os militares criaram o terror. As remoções só terminaram porque o custo era altíssimo e houve um desgaste com a opinião pública", diz Abdias, que foi presidente da Associação de Moradores do São Carlos de 1965 a 68. Outro que ficou preso no Dops foi José Carlos, o Juca, Secretário Geral da Fafeg. Ele conta que a própria entidade já havia antecipado em seus congressos o fracasso das remoções. "Nós já havíamos desenvolvido estudos junto com sociólogos e arquitetos que previam a criação de um cinturão de pobreza ao redor da cidade. Ao contrário do que eles achavam, as remoções eram o problema, e não a solução", garante.

Zona Oeste era um vazio

Pelo menos cinco grandes comunidades da Zona Sul e da Grande Tijuca foram destruídas nos anos 60 e início dos 70: além da Praia do Pinto (no Leblon), as favelas da Catacumba (na Lagoa), Macedo Sobrinho (no Humaitá), Pasmado (em Copacabana) e Esqueleto (na Tijuca) (leia a matéria “Três Casos”). Juntas, elas abrigavam cerca de 40 mil pessoas. Grande parte dos moradores removidos foram transferidos para conjuntos habitacionais recém construídos na Zona Oeste. “A Cidade de Deus era muito isolada, não tinha infra-estrutura nenhuma para receber os moradores removidos”, admite Artur Rios.

Os moradores achavam estar fazendo bom negócio ao ser transferidos para apartamentos no subúrbio. “Eles só se deram conta da realidade quando chegavam lá. A Zona Oeste era um vazio”, confirma Marcelo Baumann. A longa distância do Centro da cidade, a precariedade dos transportes e a infra-estrutura ainda em fase de instalação, causou grande descontentamento entre os removidos. Anos depois, alguns venderam suas casas e voltaram a morar em favelas da Zona Sul.


Famílias removidas do Esqueleto, em 1965

O processo de remoção imaginado pela Chisam começava com uma carta oficial informando em quanto tempo os moradores deveriam deixar suas casas. Depois disso, as associações comunitárias ficavam responsáveis por fazer os cadastros e listar as possíveis opções de novas moradias. Os moradores então eram convidados a visitar os conjuntos habitacionais. Semanas depois, a Prefeitura disponibilizava caminhões para as mudanças. "Dei sorte porque consegui a casa que queria. Outros amigos foram morar longe, em apartamentos pequenos. Muitos se endividaram para pagar as prestações”, revela Antônio Garcia, outro ex-morador da Praia do Pinto. “Cheguei a ver um apartamento na Cidade de Deus mas não gostei. Era muito longe do meu trabalho e todo o sistema de infra-estrutura não estava pronto”.

O ex-líder comunitário da Favela da Catacumba, Adetrudes Justino de Souza, o Seu Souza, revela que ele próprio ajudou no processo de cadastramento. Mesmo assim, foi contra os métodos usados pelo Estado. “Por um lado foi bom porque a gente passou a ter um apartamento nosso, com documento de propriedade. Mas discordo de como o processo foi conduzido. Foi tudo muito rápido, as pessoas deveriam ter sido preparadas. Mas não tinha como escapar: Se não fosse o Lacerda, alguém faria isso depois. Eles queriam embelezar a Lagoa”, afirma.

Favela como “aberração”

O problema das comunidades pobres como incômodo social começou a ser percebido somente nos anos 40, portanto, quase meio século após a instalação da primeira favela, no Morro da Providência, no Centro. Nessa época, as favelas eram vistas como uma “aberração” urbana e ainda não constavam dos mapas oficiais da cidade. Antes disso, elas eram simplesmente ignoradas, vistas como foco de marginalidade e falta de higiene. O Código de Obras do Rio, de 1937, por exemplo, já propunha a eliminação completa das comunidades carentes e a criação de parques proletários - entre 1941 e 1943, foram construídos três parques, na Gávea, Leblon e Caju.

Anos depois, seus moradores também seriam expulsos pela especulação imobiliária. “É importante destacar que a descoberta da favela pela sociedade civil não nasceu de uma preocupação com a qualidade de vida de seus moradores, e sim do incômodo que eles causavam à classe média”, argumenta Marcelo Baumann. Daí para frente, o Estado passou a propor soluções cada vez mais autoritárias e também excludentes. Assim, nasceram as políticas de remoção e o plano de desfavelização da Zona Sul nos anos 60.


Família da Rocinha chega à Cidade de Deus em 1971

Durante seus quatro anos de mandato, entre 1960 e 64, o governador Carlos Lacerda defendeu uma reformulação completa da política habitacional no Estado do Rio. Seu objetivo era levar os pobres para a periferia, nos mesmos moldes do que acontecia nas principais cidades da Europa e Estados Unidos. Foi durante seu governo que foram construídas a Vila Kennedy, em Senador Camará, a Vila Aliança, em Bangu, e a Vila Esperança, em Vigário Geral, além da Cidade de Deus, em Jacarepaguá, que sozinha recebeu moradores de 63 favelas extintas. A criação dos conjuntos habitacionais fazia parte do Plano de Habitação Popular, amplamente financiado pelo governo americano através da Aliança para o Progresso.

Os governos que sucederam Lacerda, já durante o período militar, não se decidiram entre a política de remoção ou de urbanização das favelas. E acabaram trabalhando com as duas perspectivas. Um dos poucos projetos sérios nessa fase foi o da Companhia de Desenvolvimento de Comunidades (Codesco), que realizou a urbanização das favelas de Brás de Pina e Morro União. Meses depois, no entanto, foi criada a Chisam, que tratava os morros como espaço urbano “deformado” e pregava a eliminação completa das favelas. A justificativa oficial era a “recuperação econômica, moral, social e higiênica das famílias faveladas”. O então prefeito Negrão de Lima não esboçou qualquer reação. “Os militares não respeitavam ninguém, o tratamento não ia ser diferente com os favelados”, esclarece Marcelo Baumann.

Segundo relatório oficial da Fundação Leão XIII, de 1968, as favelas eram “uma aglomeração irregular de subproletários sem capacitação profissional, baixos padrões de vida, anlfabetismo, messianismo, promiscuidade, alcoolismo... refúgio para elementos criminosos e marginais, foco de parasitas e doenças contagiosas”.

Símbolos de resistência

Por volta de 1975, a febre das remoções foi aos poucos perdendo força e a política de desfavelização da Zona Sul se esvaziando. A verba usada para destruir as comunidades carentes estava cada vez mais escassa e os recursos do Banco Nacional de Habitação (BNH), extinto em 1986, passaram a ser destinados para a construção de apartamentos para a classe média.

Quase dez anos após a criação da Chisam, cerca de 130 mil ex-favelados haviam sido removidos para conjuntos habitacionais nos subúrbios. Mesmo assim, ainda existiam pelo menos 52 favelas em bairros tipicamente ocupados pela classe média.

Os sobreviventes da política de desfavelização da Zona Sul só conseguiram se manter nos seus barracos devido à forte mobilização das associações de moradores. “As favelas do Cantagalo, Rocinha e Pavãozinho são verdadeiros símbolos de resistência. Os líderes comunitários tiveram uma participação muito importante, assim como também a igreja e os intelectuais”, afirma Marcelo Baumann.

O sociólogo Artur Rios lembra que o Favela-Bairro dos anos 90 foi um grande avanço em relação às políticas habitacionais da década de 60. Mas, segundo ele, os políticos continuam longe de compreender o problema das favelas. “As comunidades carentes não podem ser vistas como algo ilegal, provisório. Hoje em dia eu defendo uma secretaria específica para as favelas. Falta um plano diretor, devemos ter políticas específicas. O grande desafio é ver a favela integrada à cidade”, resume.






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