sexta-feira, 5 de março de 2010

Obras paralisadas pelo MP.

VALOR ECONOMICO, 1/3/2010


Daniela D'Ambrosio, de São Paulo

Gustavo Lourenção/Valor

Carneiro, promotor e coordenador de habitação e urbanismo do MP de São Paulo: "Estamos tentando evitar o agravamento do quadro que já está caótico"

Uma discussão tão polêmica quanto silenciosa está sendo travada no mercado imobiliário. O embate envolve, de um lado, o Ministério Público e, de outro, as construtoras e, muitas vezes, os próprios órgãos públicos que são responsáveis pela concessão de licenças e alvarás. O número de projetos investigados pelo Ministério Público - muitos deles embargados - aumenta nas grandes cidades como reflexo do crescimento acelerado da construção civil e da injeção de capital recebida pelo setor nos últimos cinco anos. Nos bastidores, empresários, executivos, entidades de classe e advogados iniciam um movimento para, de alguma forma, sensibilizar o MP e amenizar o problema.

O assunto ainda é tabu entre os empresários que, nitidamente, temem se expor. Nenhuma das empresas procuradas pelo Valor falou abertamente sobre a questão. As construtoras alegam que, mesmo com todos os registros, aprovações dos órgãos públicos e alvarás em ordem, são surpreendidas pelo Ministério Público, que entra com inquérito civil ou uma ação civil pública e requer ao juiz o embargo da obra . O MP, por sua vez, diz que está preocupado com o nível de adensamento, com o crescimento desordenado e mau planejado das cidades e também com o que considera a falta de rigor e interpretação correta da lei por parte do poder público - principalmente as prefeituras.

De maneira geral, todos os envolvidos no assunto - sejam advogados ou empresários - ressaltam a importância de o Brasil ter um Ministério Público atuante e forte, que preza pelos interesses da sociedade. Mas não tarda e a afirmação vem acompanhada de um senão que pode ser mais ou menos veemente dependendo do interlocutor. "Não há maior temor que ronda o setor de construção hoje do que os imbróglios com o MP", afirma o presidente de uma grande empresa.

Antes mais comum em grandes empreendimentos, os questionamentos estão chegando a obras menos ambiciosas. "A questão sempre existiu, mas agora está mais latente. O número de casos está aumentando, o que deixa o mercado inseguro", afirma o advogado e sócio do escritório Bicalho e Molica, Rodrigo Bicalho. "Esse crescimento está diretamente ligado ao fenômeno econômico. Com o aumento do número de negócios acontecendo, é natural que aumentem os questionamentos", diz José Carlos Puoli, sócio de contencioso imobiliário do Duarte, Garcia, Caselli, Guimarães e Terra e professor de Processo Civil da Universidade de São Paulo.

O promotor e coordenador de habitação e urbanismo do Ministério Público do Estado de São Paulo, Ivan Carneiro, é enfático. Diz que as empresas, sim, precisam crescer, mas desde que seja de forma ordenada. "O adensamento excessivo das cidades causa congestionamento, perda de qualidade de vida, impermeabilização do solo e aumenta o número de tragédias." Na extensa lista de problemas que causam as enchentes em São Paulo, por exemplo, a falta de áreas verdes na zona urbana - que permitem a infiltração da água - e o excesso de edificações - que, por outro lado, diminuem a permeabilidade do solo - são apontados como agravantes. "Se São Paulo está esse caos é porque o poder público foi ineficiente", afirma o promotor de habitação de uma grande cidade do interior paulista, que diz que a atuação do MP em outros municípios visa evitar que os problemas que já existem nas grandes metrópoles não se repitam.

"Depois nós somos os vilões. Se nada for feito, vai vir um tragédia atrás da outra", diz Carneiro. "Estamos tentando evitar o agravamento do quadro que já está caótico", completa.

Além dessas motivações, que acabam por representar o pensamento e a atuação do Ministério Público em todo o Brasil, cada cidade tem questões específicas, que podem levar a um número de autuações maiores. Em Campinas há um descompasso entre a prefeitura e o Ministério Público e vários projetos estão embargados. Os licenciamentos ambientais estavam sendo feitos pela prefeitura sem análise estadual. Há vários projetos parados. No litoral paulista, são recorrentes os casos de obras embargadas por problemas ambientais.

Em São Paulo, por exemplo, a mudança na lei de zoneamento da capital, que diminuiu o adensamento das cidades, gera várias contestações. Antes de haver a mudança, muitas construtoras protocolaram um projeto ainda de acordo com a lei antiga, mas os lançamentos aconteceram na vigência da nova lei - muitos deles, segundo o MP, com novas alterações posteriores. O caso mais comum é de edifícios mais altos do que poderiam ser construídos pelo novo plano diretor. "Eles (construtoras) dizem que têm direito adquirido, mas esse é um caso claro de se contestar judicialmente", afirma Carneiro. "Contra a lei, não há direito adquirido."

Para os advogados, o problema é agravado porque as leis ambientais e urbanísticas são subjetivas e permitem diferentes interpretações "Por conta disso, passa a haver uma inversão de valores e um descrédito no parecer dos órgãos competentes", afirma José Carlos Puoli. "O MP, muitas vezes, tem um entendimento diverso da prefeitura", acrescenta.

Um termo recorrente quando se aborda o assunto, invariavelmente, é a insegurança jurídica. "O empresário precisa estar preparado para encontrar uma pedra no terreno, para uma resposta negativa da demanda ao seu projeto, até para uma crise financeira. São vários os riscos de um negócio, mas ele tem de ter segurança em relação ao marco jurídico do país", afirma João Crestana, presidente do Secovi-SP e representante das empresas nessa questão.

No fim do ano passado, o Secovi se reuniu com o promotor de habitação Ivan Carneiro e com Fernando Grella, então procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo, que recentemente afastou-se do cargo para disputar a reeleição. "Nós fazemos tudo dentro da lei, conseguimos todas as aprovações antes de lançar um empreendimento, precisamos prestar conta aos nossos investidores", diz o dono de uma grande empresa de capital aberto. As empresas também reclamam que, muitas vezes, as denúncias são apresentadas por um grupo pequeno, que age a favor de interesses próprios, como vizinhos que estão preocupados com a desvalorização do próprio imóvel.

Um executivo de uma empresa média de capital aberto diz que o setor não tem tradição corporativista. "O movimento ainda está começando, mas é a primeira vez que vejo as empresas tão dispostas a se unir em prol de um interesse comum", diz. Além dos encontros promovidos pelo Secovi, por exemplo, começam a pipocar reuniões informais entre os executivos e empresários. Alguns deles estiveram juntos recentemente para conversar sobre vários projetos embargados na mesma região de Campinas. No fim do ano passado, houve um jantar na casa de um importante empresário da capital. Os concorrentes deixaram as diferenças em casa e mesmo acompanhados de suas esposas o tema do jantar foi um só: a atuação do Ministério Público.

Para o MP, falta disposição do empresário e uma omissão da fiscalização do poder público. "Todo prefeito quer mostrar que a cidade cresceu no seu mandato, mas isso tem um custo para a sociedade", afirma Carneiro, acrescentando que o poder público erra ao ser pressionado pelas empresas e acaba concedendo licenças que não deveria. "Há uma ganância excessiva do lado das empresas e ineficácia do órgão público. Quem deveria frear é a prefeitura, quando ela não faz isso, o MP tem de agir", diz o promotor da cidade paulista.

Uma das saídas melhores para ambos os lados são os chamados de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) - nada mais são do que acordos que exigem uma contrapartida de investimento da empresa. Eles normalmente acontecem antes que o MP entre com uma ação civil pública, mas o entendimento pode ocorrer somente depois de a obra ter sido embargada. Os pedidos vão desde o plantio de árvores, recuperação de áreas verdes e praças públicas - em regiões carentes, algumas vezes - até a recuperação de vias públicas, abertura de novas ruas. Fontes do setor dizem que nem sempre o MP está disposto a discutir uma contrapartida. Já o promotor Ivan Carneiro diz que as empresas não querem gastar. "O valor que o MP entende como certo pode inviabilizar o investimento", diz o advogado Rodrigo Bicalho. "De maneira geral, no entanto, os acordos são benéficos e resolvem a questão de maneira mais rápida", conclui.

O aumento do número de obras que viraram alvo do MP já começa a ter diversos reflexos. Executivos e advogados dizem que já começa a existir receio por parte dos próprios funcionários municipais, porque a prefeitura também vira ré nos processos por ter concedido alvará. Segundo o executivo de uma grande empresa, a Cetesb, por exemplo, está mais lenta nas aprovações "mesmo que todas as exigências tenham sido seguidas à risca".

No caso de licenças ambientais, o medo é ainda maior. Isso porque a responsabilidade pode recair sobre o funcionário público que a concedeu. É que a lei de crimes ambientais prevê que o funcionário responda civil e criminalmente em caso de irregularidade. "Daí uma das razões pelas quais as licenças ambientais demoram tanto a sair."

Empresários e os advogados das companhias estão pessimistas. "Se não tiver solução para o imbróglio, vai travar o mercado. Não é só o desgaste do prejuízo econômico, mas também para a imagem da empresa", diz o advogado José Carlos Puoli. Um dos executivos ouvidos pelo Valor acredita que um dos efeitos colaterais é a redução do número de lançamentos na capital paulista e em regiões onde o cerco do MP é maior. "Em alguns casos, há um exagero do MP ao aplicar a lei com muito rigor", afirma Rodrigo Bicalho.

Para Crestana, do Secovi, trata-se de um impasse muito sério, que deve prejudicar várias empresas e que pode lesar os consumidores. Uma das obras que está sendo investigada pelo MP, Domínio Marajoara, da Cyrela e Queiroz Galvão, em Interlagos, zona sul de São Paulo, ficou embargada por cerca de três meses e, embora as empresas tenham entrado com recurso, quem conseguiu suspender a liminar foi uma ação movida pelos compradores do imóvel sob alegação de boa fé. A obra prossegue e o juiz de primeira instância ainda não julgou o mérito.

O Ministério Público não pretende ceder às pressões. Ao contrário. Para Carneiro, as aprovações dentro do Minha Casa, Minha Vida estão acontecendo de forma muito rápida. "Ainda vai aparecer muita coisa embargada do Minha Casa, Minha Vida", diz. O Ministério Público já ofertou 27 propostas para mudança da lei 11.977, criada no ano passado para instituir o programa habitacional do governo.

Ipsis Litteris

O Ministério Público não age de maneira pró-ativa. É "provocado", através de uma denúncia - que pode vir de uma ONG, associação de bairro ou até de um funcionário público - sobre a possível irregularidade de uma obra. Faz uma análise preliminar do caso e pode iniciar um inquérito civil (promove audiências, ouve testemunhas, requisita documentos). No Estado de São Paulo, por exemplo, há seis promotores da área de habitação e urbanismo, que contam com assistentes técnicos da promotoria, engenheiros civis e florestais, geólogos e arquitetos. O papel desses profissionais é ajudar na perícia e emitir laudos que reafirmem ou contestem os registros emitidos pelos órgãos públicos. Uma vez constatada a irregularidade, o Ministério Público entra com uma ação civil pública, ou seja, o caso vai para a Justiça. Geralmente, nessa fase, pode requerer uma liminar para que a obra seja embargada. O juiz de primeira instância pode ou não conceder a liminar - o MP não tem poder de embargar a obra diretamente. A construtora ou o MP, conforme a decisão do juiz, podem entrar com recurso ao Tribunal (agravo de instrumento) para que a decisão do juiz de primeira instância seja revertida. Durante a fase de inquérito e antes de entrar com ação, pode haver um acordo entre o Ministério Público e a construtora, chamado de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Nesse caso, a empresa geralmente tem de dar uma contrapartida, que pode ser desde o plantio de árvores e recuperação de praças até a extensão e abertura de vias públicas.

Em São Paulo, prédio ficou embargado por 15 anos

O Ministério Público atua de forma descentralizada e não há dados compilados do número de casos de obras embargadas ou sob investigação. Hoje, os empreendimentos na mira do MP estão espalhados por todo o Brasil, mas o Estado de São Paulo reúne vários casos e alguns deles acabam ganhando mais destaque. O mais emblemático na cidade paulistana é o espigão da rua Tucumã, próximo a Marginal Pinheiros, com apartamentos avaliados em mais de R$ 7 milhões cada. Com 30,1 metros a mais que o permitido - o equivalente a um prédio de 10 andares - o edifício ficou embargado por quase 15 anos. No fim do ano passado, o projeto da construtora Moraes Sampaio foi aprovado em segunda instância, depois de feitas algumas alterações pela construtora, como a redução da planta original em 160 m2 (para 560 m2) e a compra de um terreno vizinho ao edifício para aumentar o recuo.

O Alphaville Granja Viana com 675 mil m2 com 304 lotes residenciais e 29 comerciais ganhou evidência no fim do ano e já foram criados alguns sites para discutir a questão. O empreendimento não está embargado, mas sob investigação. Em setembro de 2009, uma ONG ingressou com uma ação civil pública questionando o licenciamento ambiental do empreendimento. O pedido de liminar para embargo da obra foi negado em 1ª instância pela justiça. Após essa decisão, a ONG ingressou com agravo de instrumento perante Tribunal de Justiça, e o recurso ainda não foi julgado. O juiz autorizou as obras de terraplanagem, drenagem e replantio de mudas, até que seja julgado o recurso pelo Tribunal de Justiça (TJ-SP).

Quando o embargo se estende por período mais longo, a construtora pode optar por desistir temporariamente do projeto e, se já tiver sido comercializado, devolver o dinheiro aos compradores. Foi o que fez a Tecnisa na cidade de Guarulhos em um empreendimento lançado em junho de 2007 e que teria as obras iniciadas em janeiro de 2008. O empreendimento foi embargado pelo MP sob a alegação da existência de uma mina d´água no local, o que inviabilizava a concessão do alvará pela Prefeitura. Segundo a Tecnisa, a companhia entrou com recurso, mas acabou devolvendo o dinheiro corrigido aos compradores - cerca de 80% das unidades haviam sido vendidas. A expectativa é retomar o projeto. (DD)

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