01/02/2010 Rafael Borges*
É extremamente oportuno que a cidade do Rio de Janeiro abrigue este ato. E não é porque, dentre todas as cidades brasileiras, talvez esta seja a mais aprazível. É que, na mesma medida, trata-se da cidade mais violenta do país. E a violência a qual me refiro não é aquela relacionada à criminalidade tosca dos despossuídos, os pequenos furtos, as saidinhas de banco e outras estratégias de sobrevivência da pobreza carioca. Refiro-me à violência policial, aquela produzida por homens de farda e a mando de chefes de Estado. A violência financiada por nossos impostos.
Os números do governo Sergio Cabral são estarrecedores, falam por si sós. Não há precedente em qualquer outro governo que já tenha ocupado o Palácio da Guanabara ou em qualquer outro período político da história brasileira.
Segundo relatório produzido pela HRW (Human Rigths Watch), a policia fluminense matou 1.137 pessoas apenas em 2008, o que dá uma média de 3,11 pessoas por dia. E respirem aliviados, porque em 2007, ano do PAN, esse mesmo número chegou a 1.330. Ganhamos do tucanato paulista, que emplacou 397 mortes em 2008, de toda África do Sul, que executou 468 indivíduos e todo os EUA, onde a policia fez 371 vitimas no mesmo ano. Como se vê, matamos três vezes mais pessoas que o segundo colocado da lista, um pais recém saído de um conflito racial de alarmantes proporções. Enquanto a policia paulista mata 0.97 pessoas por 100 mil habitantes, a policia fluminense mata 6.86 na mesma faixa. Sete vezes mais, nesse calculo proporcional. E nos EUA o mesmo índice ainda cai para 0,12.
Perdemos feio para o país que ostenta os maiores níveis de controle social já observados na historia da humanidade. O protótipo perfeito do Estado Penal, na voz autorizada de Louic Wacquant. O Estado socialmente omisso e falido na promoção de políticas públicas, mas armado até os dentes para afastar qualquer ameaça à acumulação do capital. O Estado Penal também é aqui, onde 20% de todos os homicídios dolosos praticados têm como autores os homens da lei.
No Rio de Janeiro do século XXI, qualquer forma de organização popular é natimorta. Não há movimento social que floresça e resista em um ambiente desses. Aqui, a criminalização dos movimentos sociais começa na origem. Quantas, dessas 2467 vidas, apenas para ficarmos em 2007 e 2008, não eram lideranças em suas comunidades? Quantas vidas vivas a ação policial já não aterrorizou? Quem não tem medo da polícia? Imaginem o efeito controlador do caveirão, ou dos recrutas das Unidades de Policia Pacificadoras – permanentes agentes da ordem nos espaços que a pobreza consegue habitar.
A política de ocupação armada do Estado do Rio de Janeiro cassa sistematicamente os direitos civis mais elementares dos indivíduos pobres e favelados. É esta a ideologia presente na ostensividade das UPP’s, nas blitzen do asfalto, nas revistas pessoais, e na proibição ao baile funk. A pobreza não pode andar, não pode se divertir, não pode se reunir. Quando o faz, é tratada como bandida e criminosa. Os números do Governo Sérgio Cabral soam como verdadeiras ameaças de morte. Nem a ditadura de 64 aterrorizou tanto. Arquivos do Tortura Nunca Mais revelam que em 1971, um dos anos mais duros daquele período, 33 militantes políticos foram mortos pela repressão. Esse número é infinitamente inferior a qualquer outro anunciado aqui e nem por isso deixamos de reagir quando o editorialista infeliz da Folha de São Paulo apelidou a ditadura de ditabranda.
Infelizmente, sabemos que o uso indevido de força policial não é uma prerrogativa do Rio de Janeiro. E quando o tema envolve a criminalização de movimentos sociais, não dá pra ignorar o Estado do Rio Grande do Sul. É assustador a forma como o governo, a polícia e o Ministério Público gaúcho perseguem os movimentos sociais.
Lá, as Brigadas Militares articulam um verdadeiro Estado de Exceção, que viola as garantias fundamentais mais elementares e ferem de morte as organizações populares, notadamente o MST. Em pleno 2010, existem 8 lideranças do MST sendo processadas por crimes políticos previstos na famigerada Lei de Segurança Nacional. Por lá e por aqui, ignora-se o direito de resistência, a liberdade de reunião, de pensamento e de manifestação. O RS mantem banco de dados com informações de natureza política e ideológica de cada militante; há casos comprovados de tortura e prisões injustificadas.
O Estado Democrático de Direito não tolera essa conjuntura. Nossa resistência, que vez ou outra flerta com a desobediência, é instrumento essencial para a transformação dessa realidade. A Constituição admite e reconhece o acionamento automático do direito de resistência e, portanto, de atos de desobediência, sempre que o Estado frustrar a comunidade enquanto ente capaz de regular as instituições sociais e promover, minimamente, a dignidade da pessoa humana. Esse reconhecimento político do Estado em admitir mais um mecanismo de autodefesa da sociedade demonstra o grau de legitimidade do próprio sistema jurídico.
Para pôr cobro a esse contínuo processo de sufocamento dos movimentos sociais é preciso muita articulação e denúncia. Um projeto desses também passa por impedir a reeleição do governador Sérgio Cabral, a sucessão tucana da governadora Yeda Crusius, a eleição de José Serra à presidência da República e garantir a inflexão do Governo Federal que, sem ou com Dilma, deverá ser ocupado por representações populares capazes de descriminalizar qualquer forma de organização social, fazendo desse país espaço de liberdade e convivência fraterna.
* Advogado
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