segunda-feira, 8 de março de 2010

Princípio da igualdade. Por que somente a Vila Autódromo?

COMUNIDADES CONTRA REMOÇÕES
08/03/2010
“Olimpíadas para todos, sem remoção!”
A mais recente luta da comunidade Vila Autódromo

“Olimpíadas para todos, sem remoção!”; “Apesar das ameaças,
desejamos sucesso para as Olimpíadas”; “Esporte é vida, não estresse. Políticas
Públicas já!”; “Veneza carioca para os ricos e despejo para os pobres”. As
faixas colocadas em um pequeno campo de futebol, transformado provisoriamente
em local para assembléias entre os moradores, movimentos sociais e
representantes de diversas entidades, expressam o repúdio da comunidade Vila
Autódromo ao projeto de remoção de centenas de famílias pobres para a
construção no local de equipamentos para os jogos olímpicos de 2016.
Não é a primeira vez que a comunidade precisa se mobilizar
para evitar as tentativas de remoção involuntária. A primeira ocorreu em 1992,
quando o Município do Rio de Janeiro alegou “dano estético e ambiental” em ação
judicial ajuizada no Tribunal do Rio de Janeiro requerendo a retirada total da
comunidade. A Barra da Tijuca, então, despontava como nova centralidade para
empreendimentos imobiliários, comerciais e esportivos, exigindo, como bem
traduziu o procurador do município, uma nova “estética”, na qual os pobres não
estavam incluídos.
A comunidade, por sua vez, organizou-se e apresentou uma
reação adequada à ofensiva municipal: em apenas dois anos, os moradores
integraram um programa de regularização fundiária em que o poder público
estadual, proprietário da gleba, reconheceu que o local era utilizado, há
décadas, para a moradia. No mesmo passo, Vila Autódromo articulou sua defesa
jurídica e impediu a remoção judicial das casas, demonstrando a fragilidade dos
argumentos municipais em um litígio que até hoje se arrasta no Judiciário.

De Vila Autódromo, um olhar sobre a urbanização brasileira
A
situação vivenciada por Vila Autódromo não se distingue da história de muitas
outras comunidades, favelas e bairros pobres das metrópoles brasileiras.
Originalmente uma vila de pescadores, Vila Autódromo torna-se, nos anos 1970,
uma oportunidade para a moradia de centenas de migrantes operários e
trabalhadores informais que chegaram à região para a construção do autódromo de
Jacarepaguá, do metrô e dos novos empreendimentos imobiliários que despontavam
no local. Outras famílias foram ali assentadas em razão da remoção de outra
comunidade, chamada Cardoso Fontes.
Pescadores,
operários precarizados, desempregados, trabalhadores informais, famílias
removidas e migrantes formam a rede social que irá paulatinamente urbanizar e
garantir as condições de vida na comunidade. O sistema utilizado é o denominado
“mutirão”, pelo qual os moradores constroem não só suas casas, mas todo o
espaço urbano, incluindo ruas, calçadas, rede de distribuição de água, sistema
sanitário, creches, escolas e espaços de convívio, como o campo de futebol, a
igreja e a sede da associação de moradores.
Além
de ser um espaço construído pelo trabalho contínuo dos moradores, Vila
Autódromo aparece também como uma rede diversificada de trabalhadores da
cidade: eletricistas, bombeiros, mecânicos, porteiros, pedreiros, costureiras,
pequenos comerciantes, entre outros, realizam uma dinâmica prestação de
serviços fundamentais para a vida urbana. O trabalho de construção da cidade
se confunde, aqui, com as atividades prestadaspara a cidade. Aquilo que é
definido pejorativamente como o campo subterrâneo da informalidade (a cidade
ilegal), é na verdade a vida e o trabalho diário, múltiplo e rico dos moradores
de comunidades e favelas desprovidos de direitos.
Reconhecer a dimensão real dos direitos econômicos, sociais
e culturais das comunidades pobres
Como
afirmava o jurista Joaquin Herrera Flores (A reinvenção dos direitos humanos,
2009), os direitos humanos não são meras declarações formais ou abstratas, mas
verdadeiros processos de luta ligados à vida, à liberdade e ao trabalho. Falar
em direitos econômicos, sociais e culturais das comunidades pobres é exatamente
reconhecer a dimensão material (e real!) da vida e do trabalho exercido por
elas na cidade e para a cidade.
Os
processos de remoção involuntária raramente consideram a articulação concreta
entre o exercício dos direitos e o espaço urbano. Das relações com o território
surgem diferentes formas de trabalho, serviços prestados pelos autônomos e
informais, redes de solidariedade social, contatos com os vizinhos, amizades
para as crianças, convívios na escola, contatos com os profissionais de saúde,
etc. O que para o poder público é um simples “reassentamento” , para as
famílias é a uma mudança total nas formas de vida e de acesso, mesmo quando
precário, aos direitos.
Freqüentemente, alguns políticos, até os ditos
progressistas, questionam o motivo pelo qual uma comunidade se recusa a ser
realocada para casas construídas pelo poder público. Ora, a homogeneidade das
construções, o espaço planificado e sem criatividade das casas e a ruptura das
relações sociais com o território estão na origem da resistência dos moradores,
inclusive os de Vila Autódromo.
A comunidade quer continuar onde está e receber
investimentos públicos!

Ao invés de propor remoções custosas e indesejadas, o poder
público deveria reconhecer e ampliar iniciativas criadas pelos próprios
moradores, investindo em urbanização com participação e decisão popular,
regularização fundiária (Cf. projeto do ITERJ para Vila Autódromo), assistência
técnica gratuita, políticas de transferência e geração de renda, estímulo às
redes sociais e culturais existentes, proteção do trabalhador informal e do
pequeno comerciante, acesso à mobilidade urbana, a todos os serviços públicos e
aos demais direitos da cidade.
A remoção de Vila Autódromo contraria os direitos
fundamentais da cidade
A
remoção de Vila Autódromo ofende a legislação brasileira e a maioria dos
princípios e compromissos internacionais adotados pelo Brasil sobre a
efetivação dos direitos da cidade. Da Constituição Federal ao Estatuto da
Cidade, da Agenda Habitat às observações gerais da ONU sobre o Tratado de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, passando pela Carta Mundial pelo
Direito à Cidade elaborada pelos movimentos sociais, encontramos fundamento
para um total repúdio ao tipo de “reassentamento” que se quer realizar em Vila Autódromo.
Sumariamente
e sem excluir outros argumentos, poderíamos apontar as seguintes razões: a)
Violação da cláusula democrática e participativa. A comunidade em nenhum
momento foi consultada sobre sua inclusão no projeto olímpico apresentado ao
COI e soube pela “mídia” que deveria ser removida; b) Primado da regularização
fundiária, do direito à moradia e da segurança da posse. A comunidade foi
regularizada há quinze anos e hoje é objeto de outro programa estadual para
atualizar e ampliar os títulos concedidos. A segurança da posse como elemento
do direito à moradia é oponível ao município. Vale lembrar que dezenas de
famílias já passaram por anterior processo de remoção e agora têm o direito de
desfrutar de uma moradia segura e estável; c) Princípio da vedação ao
retrocesso. Tendo sido objeto de política pública de promoção do direito social
à moradia, o poder público não pode retroceder e fragilizar a proteção já
alcançada de um direito social; d) Reassentamento como ultima ratio. As
diretrizes internacionais afirmam que o reassentamento involuntário é medida
extrema e deve ocorrer somente quando não há alternativa, não sendo o caso de
Vila Autódromo; e) Garantia do devido processo legal. A remoção sob o argumento
dos jogos olímpicos seria meio para, à margem do processo legal, atingir um
objetivo hoje vedado pelo Poder Judiciário; f) Princípio da igualdade. De todo
o seu entorno, incluindo os inúmeros empreendimentos imobiliários no local, a
comunidade será a única a ser atingida pelo projeto olímpico. Por que somente a
Vila Autódromo?
Por esses e outros motivos, a remoção de Vila Autódromo é
ilegal do ponto de vista jurídico e inaceitável do ponto de vista político.
Contra ela, todos os cidadãos, as comunidades pobres e movimentos sociais
urbanos têm o direito de se insurgir e exigir do poder público o respeito aos
direitos fundamentais da cidade. Participar da mais recente luta de Vila
Autódromo é tarefa para aqueles que desejam, apesar das ameaças, “olimpíadas
para todos, sem remoção!”.

ASSOCIAÇÃO DE MORADORES DE VILA AUTÓDROMO

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