sexta-feira, 4 de junho de 2010

VIRAMOS UMA CHINA?

Revista ÉPOCA, 31/5/2010



O Brasil começou o ano em ritmo de crescimento chinês. Por que não vamos conseguir sustentar essa taxa

Marcos Coronato

Há dois anos, o Brasil tinha a expectativa de uma economia perto de 7% de crescimento. Aí veio a crise global, e nós crescemos zero. Nas circunstâncias mundiais, até que esse zero foi um lucro. Era um zero, mas com viés de crescimento. Esse viés se cumpriu. Só nos primeiros quatro meses do ano, já criamos quase a metade dos ambicionados 2 milhões de empregos formais. Com base na atividade econômica do país, o mercado financeiro projetou um crescimento anual de 6,5%, o dobro da média da década. Essa estimativa, já muito boa, está sendo considerada defasada por algumas entidades relevantes. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) fala em 7% e o Itaú Unibanco em 7,5% de crescimento anual. Se mantivesse o ritmo do primeiro trimestre – algo difícil de acontecer –, o país cresceria cerca de 10%, o triplo da média da década, similar ao ritmo da economia chinesa. Na história recente, o Brasil só teve esse ritmo nos anos 70, durante o regime militar, e ele não se refletia, como hoje, em diminuição da desigualdade – o país crescia, e os pobres continuavam pobres.

É claro que é empolgante falar em “crescimento chinês”, “novo milagre econômico” ou “volta ao ritmo dos anos 70”. Mas é uma empolgação desavisada. O crescimento do Brasil que usava calças boca de sino, de 9% ao longo de mais de uma década (de 1968 a 1980), não vai se repetir. Por dois motivos.

O primeiro é que a taxa de crescimento não pode ser dissociada do estágio da economia. Países menos maduros crescem mais por uma questão matemática. Para alguém com R$ 2 no bolso, uma nota de R$ 2 significa crescimento de 100%. Para alguém com R$ 10, é apenas 20%. O mesmo acontece com os países. Segundo projeções do FMI, Gana, no noroeste da África, deverá crescer 20% no ano que vem. A Alemanha apenas 1,7%.

Isso não significa que o Brasil não precise (e muito) crescer – e muito. As projeções de longo prazo, otimistas, são de que o Brasil mantenha taxas de 4% a 5% de crescimento anual para, daqui a três décadas, chegar ao nível de vida dos países desenvolvidos. Por que não crescer mais rápido para alcançá-los mais cedo?

Crescer com intensidade afeta positivamente a vida de todo o mundo. Em abril, houve recorde histórico de criação de empregos formais. A taxa de desemprego medida pelo IBGE nas maiores capitais recuou para 7,3%, a menor desde 2002 e uma das menores do mundo, num momento em que a maioria dos países pena com a crise (no Chile, em boa situação, a taxa está acima de 8%; nos Estados Unidos, em recuperação modesta, fica perto de 10%; na Espanha, em estado crítico, avança para os 20%). “Não tem crise por aqui. Contratamos umas 850 pessoas no ano passado e vamos contratar mais de mil neste ano”, diz Deusmar Queirós, presidente da rede de farmácias Pague Menos, nascida no Ceará e hoje avançando pelo Sul e Sudeste. Em segmentos específicos, há resultados especialmente impressionantes. A venda de eletroeletrônicos em São Paulo aumentou 23% em março, na comparação com o mesmo mês em 2009. Antes do surto de crescimento pré-crise global, teríamos de recuar quase um quarto de século para encontrar outro período semelhan-te, em 1985-1986.

Seria ótimo continuar assim. Mas o Brasil é mais ou menos como uma locomotiva tentando correr como trem-bala sobre trilhos ve-lhos e carcomidos. Esse é o segundo motivo para não sustentarmos a euforia do início do ano: temos seriíssimos gargalos de estrutura. Por causa deles, já começaram a surgir alguns sinais de desaceleração, em indicadores como a atividade industrial paulista e a quanti-dade de brasileiros à procura de crédito.

As preocupações vêm de diversos lados. Em setores específicos, como construção, a falta de gente qualificada leva à dificuldade para contratar engenheiros e técnicos. De modo geral, há falta de capacidade extra nas fábricas e sobrecarga da infraestrutura de transporte.

Cada uma dessas carências tem efeitos que correm por caminhos distintos – alguns agradáveis, como aumento de salários, e ou-tros nem tanto, como o encarecimento da produção nas empresas. Pelo caminho, perde-se eficiência e negócios deixam de ser fechados. Embora alguns setores ainda trabalhem com folga, vão se aproximando do limite o uso de estradas e aeroportos, o consumo de energia, a produção de embalagens. “A velocidade que se exige é muito superior à que conseguimos dar conta. Do ponto de vista de eficiência, o cenário vai piorar”, afirma Paulo Godoy, presidente da Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib).

Todos os problemas convergem e desembocam numa mesma consequência: as empresas, sejam indústrias ou padarias, tentam re-passar os custos em alta a seus clientes, alimentando a inflação. Por isso, a expectativa de perda de poder de compra do real em 2010, que começou o ano em 4,5% (a meta do governo), avançou rapidamente para quase 6% em maio.

"Administrar o crescimento pode ser um problema melhor que o do resto do mundo, mas ainda assim exige muito cuidado”, afirma o economista Armínio Fraga, sócio da Gávea Investimentos e ex-presidente do Banco Central. “Diante de ciclos assim, precisamos ter duas respostas – uma no longo prazo, estrutural, e outra no curto prazo, para conter a inflação.”

O Banco Central reagiu – não tão rapidamente quanto em situações anteriores – e voltou a elevar a taxa básica de juros. Ele precisa fazer isso porque, em um país sem estrutura para que as empresas aumentem sua produção, o esforço de crescimento viraria inflação. O BC deverá manter essa estratégia pelos próximos meses, a fim de refrear a volúpia de cidadãos e empresas por empréstimos e compras.

Além de elevar o custo dos empréstimos, o governo anunciou um corte de gastos de R$ 10 bilhões, para retirar dinheiro da economi-a. Essa coreografia, com alguma diferença nos detalhes, já foi vista em anos recentes. Em 1994, 2000 e 2004, episódios de crescimento foram melancolicamente abortados, num movimento que alguns economistas chamam de stop and go (para e anda) e outros mais espirituosos denominam “voo de galinha”.

A capacidade da economia de acelerar e oferecer produtos e serviços na velocidade desejada pelos consumidores depende de quanto é investido no país. Em 2009, o investimento na ampliação dessa capacidade foi de R$ 120 bilhões. Esse volume ainda é concen-trado demais – metade foi para petróleo e gás e apenas um sexto para transporte, uma área terrivelmente deficiente no Brasil. Ele tam-bém é insuficiente: a Abdib calcula que ele precisaria ser 30% maior a fim de garantir que o país crescesse de forma sustentável. Investimento magro e instável foi uma das causas da brevidade dos “voos de galinha” anteriores.

Mas a situação agora é melhor. “Temos mais controle e previsibilidade dos gastos e investimentos públicos”, diz José Paulo Rocha, sócio diretor da consultoria Deloitte. Ele acrescenta que o Brasil ficou mais resistente às oscilações econômicas globais, antes capazes de destruir qualquer planejamento local de médio prazo. Apesar de o investimento atual ainda não ser o bastante, ele está numa curva ascendente. Dos atuais 17% do PIB, deveremos chegar a 20% em 2012. Godoy, da Abdib, acredita que em 2014 o Brasil chegará ao nível de investimento ideal para 2009, cerca de R$ 160 bilhões. Apesar do atraso, o rumo está correto. O obstáculo no meio dessa traje-tória, atualmente, chama-se Europa. Se países e bancos europeus assustarem seus credores nos próximos anos, as metas do Brasil serão seriamente afetadas. A maior probabilidade, porém, é que sigamos nosso voo. Não tão alto quanto o de um dragão chinês, mas não tão curto como o de uma galinha.







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