28 julho 2009
Márcio Zonta,
de São Paulo (SP)
Presença de organizações não governamentais (ONGs) e policiamento ostensivo na favela de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, são hoje os principais artifícios usados pelas elites do entorno para manter controle sobre a área.
A análise é do sociólogo da Universidade de São Paulo (USP) Tiarajú D’Andrea, autor da dissertação de mestrado “Nas Tramas da Segregação: o Real Panorama da Polis”, que tratou sobre a disputa pelo espaço em três favelas da região sudoeste da capital paulista: Jardim Panorama, Real Parque e Paraisópolis.
No início deste ano, uma manifestação de moradores terminou em um confronto violento com a Polícia Militar, colocando Paraisópolis nas manchetes dos principais jornais do país. Embora não tenham sido confirmados, até hoje, os motivos da revolta, D’Andrea sustenta que ação não pode ser desvinculada das más condições da maioria dos habitantes da comundiade.
“Não existem fóruns públicos de discussão onde esta população possa apresentar suas reivindicações. Cortado o diálogo, só resta a violência, que é uma das formas de romper com a invisibilidade”, afirma.
Em entrevista, o sociólogo fala sobre a origem de Paraisópolis, as relações entre os habitantes da comunidade e do bairro vizinho do Morumbi, o interesse imobiliário na área e o aumento da repressão e da violência contra seus moradores.
Quem surge primeiro, Paraisópolis ou o bairro de classe econômica alta? Qual é o histórico da região?
É difícil afirmar categoricamente quem chegou primeiro. Segundo a Prefeitura de São Paulo, o primeiro registro de habitação no local onde hoje é Paraisópolis data do ano de 1937. Contudo, quando dessa primeira ocupação o local não era exatamente uma favela, mas um ambiente semirural e pouca densidade demográfica. O crescimento da população de Paraisópolis e da região ocorre mesmo na década de 1960, impulsionada pelo crescimento do bairro do Morumbi. Paraisópolis então se constitui como sendo o abrigo dos trabalhadores da construção civil contratados para edificar as mansões e condomínios do Morumbi e para trabalhar nas obras viárias e de infraestrutura urbana que passaram a ocorrer na região nessa época. Pode-se afirmar que Morumbi e Paraisópolis crescem imbricados pela necessidade mútua. Houve um considerável crescimento populacional em Paraisópolis no final da década de 1970, decorrente de um processo de favelização generalizado que ocorreu na cidade toda nessa época. Outro grande salto populacional de Paraisópolis ocorreu a partir de segunda metade da década de 1990, quando a favela passa a receber os moradores removidos de favelas da região.
Como se dão as relações vividas entre esses moradores de classes econômicas tão distintas?
O entorno rico sintetiza uma sensação de paternalismo, medo e raiva com relação à favela de Paraisópolis, expressando as formas mais arcaicas de como as elites tratam o tema dos pobres e da pobreza historicamente em nosso país. Nos últimos anos, tentou-se passar uma imagem pública de pacificação social e pacto entre essas classes que vivem tão próximas. Uma visão um pouco mais realista da questão verifica como essa pacificação foi adquirida por meio de uma forte pressão policial sobre a favela e pela forma como o entorno rico condiciona a atuação do Estado na favela, dado que possui o poder político, econômico e ideológico de construir a imagem de Paraisópolis para o mundo. É interessante notar como, em algumas reportagens da imprensa, quem dá a palavra final sobre Paraisópolis é um morador do entorno. No mais, basta lembrar que há poucos meses atrás se ventilou uma possibilidade de murar Paraisópolis e colocar câmeras de vigilância em seu interior. Esse tipo de postura de apartheid social nunca resolveu e não vai resolver os problemas sociais. Pelo contrário, só tendem a aumentar as tensões.Desde sempre, dadas as diferenças de condições socioeconômicas, as relações entre o Morumbi e Paraisópolis foram sempre de uma tensão latente, com momentos de maior e menor gravidade da situação dependendo da conjuntura.
A partir da década de 1990 uma série de ONGs passaram a atuar no local. Essa forte presença de ONGs foi outro fator que produziu na sociedade esse discurso que Paraisópolis era “pacífica” e “boa para se morar”. De fato, as ONGs auxiliam a população e transformam Paraisópolis em uma favela com mais recursos. No entanto, no atacado, a situação não muda muito. As ONGs são um paliativo, não resolvem questões estruturais e nem se propõem a isso. Como me disse certa vez uma moradora de Paraisópolis: “ONG não constrói casa, que é o maior problema de Paraisópolis”. Entre ONGs bem intencionadas e outras nem tanto, há que se ressaltar que as ONGs são também uma expressão dos tempos neoliberais de diminuição do Estado e das políticas públicas que se desdobram numa certa privatização das soluções. Enfim, a pergunta que fazemos a partir disso é: por que as ONGs estão tão presentes em Paraisópolis e nem tanto em outras favelas do município? Justamente pela sua localização. O Morumbi necessita da mão de obra barata de Paraisópolis, então, de certo modo, vive uma contradição com relação à existência da favela. Mas o Morumbi não quer pagar o preço de ter uma favela violenta ao seu lado e, para pacificar a favela, utiliza dois artifícios principalmente: a presença das ONGs e a presença policial ostensiva.
Logo, dependendo do momento e da conjuntura, a elite moradora do Morumbi produz um discurso diferente sobre a favela. Em alguns momentos ressalta a conciliação das classes e sua ação “benevolente” caracterizada pelo assistencialismo. Neste caso, Paraisópolis é uma “comunidade”.
Em outros momentos, o Morumbi induz a imprensa e a sociedade a classificar Paraisópolis como um lugar “perigosíssimo”. Neste momento, prega a ação dura e repressora da polícia e Paraisópolis deixa de ser “comunidade” para virar “favela”, com toda a implicação estigmatizadora que esse discurso produz.
Os moradores da favela de Paraisópolis são, de alguma forma, utilizados como mão de obra barata por seus vizinhos ricos?
Provavelmente de todas as formas. Hoje Paraisópolis conta com uma população desempregada de aproximadamente 25%. Por si só, esse já é um dado alarmante. Os outros 75% trabalham, sobretudo, no setor informal, e a maioria destes no entorno rico. São babás, empregadas domésticas, zeladores, motoristas, jardineiros, pedreiros, dentre outros ofícios de baixa qualificação profissional, baixa remuneração e alta exploração. Vale lembrar que estes trabalhadores precarizados não possuem nenhum tipo de benefício como carteira assinada, férias, décimo-terceiro, ou seja, não usufruem as conquistas da classe trabalhadora.
Pensar que o Morumbi apresenta ofertas de emprego a Paraisópolis é um análise rasa. Afinal, quem precisa de quem no final das contas? A elite do Morumbi não realiza nenhum desses trabalhos braçais e necessita dessa população pobre para realizá-los. E, quanto maior for a oferta de trabalhadores disponíveis, mais explorados estes serão. O grau de exploração é tanta que certa vez uma moradora me relatou que, quando residia em uma favela no bairro do Brooklin, trabalhava no entorno daquela região e recebia melhor salário do que o que recebe atualmente trabalhando como empregada doméstica no Morumbi. Além de receber pouco, ainda era submetida a revistas quando saía do local de trabalho. Essa humilhação constante no trabalho, aliada à própria violência simbólica que a riqueza desmedida provoca na população da favela transforma a relação entre os dois pólos numa bomba-relógio.
Conflitos como esses, nos últimos anos, sempre são atrelados pela polícia a facções criminosas ou a revolta da população pela morte de algum criminoso, como são dadas as várias versões da polícia e pela imprensa nesse episódio de Paraisópolis. Não seria aí uma revolta iminente pelas más condições de vida dessas pessoas, pela atuação do estado nesses locais, apenas representado pela polícia com muita opressão e criminalização?
Pelas características de Paraisópolis, tendo a acreditar que se tratou de um evento singular. A polícia tentou impor a mais óbvia de todas as versões: a de que um “criminoso” havia sido morto em uma “troca de tiros” e que, em decorrência disso, o “crime organizado” havia ordenado o levante. Enfim, a versão clássica utilizada em qualquer contexto. Contudo, representantes da favela dão outras versões e distintos órgãos da imprensa também, tendo, cada um, uma versão para o fato. Logo, o evento em questão virou algo polissêmico. Essa multiplicidade de versões é um sintoma de que, qualquer que tenha sido o fato ocorrido naquele domingo (1º de fevereiro), já existia uma tensão latente nessa população. Esta tensão foi canalizada em um fato ocorrido no domingo, seja ele qual for. Sem uma tensão latente, sem um clima de revolta anterior, o fato não teria servido de estopim.
Não sou em especialista em facções ligadas ao tráfico de drogas, mas realmente tenho dúvidas sobre o caráter da ação. Geralmente esses grupos organizados não se expõem tanto quando realizam uma ação, pois não desejam o confronto direto e nem a presença policial. Posto isso, tudo indica que o ocorrido em Paraisópolis tenha sido um levante popular, protagonizado em sua maior parte por jovens, desejosos de exporem sua revolta, mas sem uma demanda reivindicativa clara ou sem saberem os meios de exporem publicamente essa demanda.
Este ponto é de vital importância para o entendimento de atos de violência cometidos pela população pobre. A incompletude da democracia brasileira, aliada às limitações do campo jurídico e ao caráter de classe do Estado, transformam a população pobre numa massa invisível, que não pode ser ouvida e que não pode ser vista. Não existem fóruns públicos de discussão onde esta população possa apresentar suas reivindicações. Cortado o diálogo, só resta a violência, que é uma das formas de romper com a invisibilidade.
No entanto, a explicação hegemônica para o fato tende a separar o mundo em dois: a polícia e o bandido; a sociedade ordeira e os baderneiros; o bem e o mal. Não se apresenta toda uma gama de situações que induzem à revolta: o trabalhador explorado, o jovem miserável e sem perspectiva, o desemprego em massa, a tortura da polícia denunciada pela população local, a opressão simbólica expressa pelas mansões e condomínios do entorno, a falta de moradia digna, de saneamento básico, de serviços públicos, dentre outros fatores que transformam o morar em favelas em uma humilhação cotidiana.
A especulação imobiliária, com esses conflitos, ganha força em seu discurso para a desocupação das famílias dessas áreas visando a comercializar o espaço? Não seria até um argumento utilizado pelo Estado e propagado pela imprensa de que essas áreas teriam que ser desocupadas não para um bem da população da própria comunidade, mas com vistas justamente ao mercado imobiliário?
A elite moradora do Morumbi sempre teve o desejo de remover Paraisópolis. No começo da década de 1980, havia um plano elaborado por Paulo Maluf de construir uma avenida no meio da favela, visando a interligar a avenida Giovanni Gronchi à Marginal Pinheiros. Essa obra tinha como desdobramento a remoção de grande parte de Paraisópolis. A fundação da União dos Moradores de Paraisópolis em 1983 se deu justamente para se contrapor a esse projeto. E a favela se manteve no local. Hoje há um pesado investimento público-privado expresso na urbanização de Paraisópolis. No entanto, essa urbanização é criticada em diversos aspectos, como a quantidade de moradores removidos para sua efetivação, dentre outras questões.
Cabe ressaltar que Paraisópolis é uma das favelas que mais recebem esse tipo de investimento público. A questão é paradoxal, à medida que os próprios moradores desconfiam dessa urbanização, e o entorno rico, juntamente com o setor imobiliário, é um dos principais interessados na mesma. Essa urbanização teria como desdobramento o aumento do preço dos terrenos de Paraisópolis, com a melhoria parcial das condições de habitação. No entanto, a valorização interna decorre em uma valorização imobiliária do entorno também, fim último das ações desse entorno rico e do setor imobiliário.
No entanto, há que se ressaltar que remover uma favela como Paraisópolis não é tão fácil, mesmo com o poder político e econômico dos agentes interessados em que isso ocorra. Paraisópolis é uma favela muito grande, com muitos núcleos consolidados, com aproximadamente 100 mil habitantes e com uma relativa organização interna.
Qual foi a defesa de sua dissertação?
Em minha dissertação de mestrado, defendida em outubro de 2008, tratei da disputa pelo espaço em três favelas da região sudoeste: Jardim Panorama, Real Parque e Paraisópolis. Pude constatar que a produção social do espaço nessa região acontece por meio de conflitos entre diversos agentes sociais. No entanto, acabam por prevalecer os interesses do setor imobiliário e do entorno rico que, utilizando mecanismos políticos, econômicos e até ideológicos, induzem o Estado a atuarem em seu favor. Logo, pode-se afirmar que grande parte dos investimentos realizados na região como um todo são oriundos de fundos públicos, mas a decisão da destinação do investimento se dá sob a lógica privada do setor imobiliário.Apesar de aguerridos posicionamentos de grupos de moradores, essas favelas têm dificuldades de se organizarem politicamente por uma série de motivos. Um deles é que a própria representação política dessas favelas é realizada por agentes do entorno e ligados ao setor imobiliário. Essa substituição da representação desdobra-se num quiproquó: em nome da população pobre, esses representantes agem contra o que seria o interesse da própria população pobre. É a invisibilidade política da pobreza.
Em outro âmbito, essas favelas cresceram historicamente pela presença de canteiros de obras em toda a região sudoeste. Essas favelas então eram o abrigo desses trabalhadores. No entanto, se a expansão imobiliária do Morumbi e região foi a causa do nascimento e da existência dessas favelas, esta expansão é também a principal ameaça para o desaparecimento dessas mesmas favelas. Hoje, os terrenos onde se localizam o Jardim Panorama, Real Parque e Paraisópolis são valorizados e valorizáveis. de certa forma, os terrenos valem mais que a própria oferta de mão de obra nelas localizadas. Logo, para o desaparecimento dessas favelas com o objetivo de construção de torres de escritório ou condomínios, seria necessário haver outros pólos de concentração de mão de obra destinada a atender as mansões do Morumbi.
Talvez não seja por acaso que a região seja atendida por uma série de obras viárias e de transporte de massa, como os trens da CPTM e a linha quatro do metrô. Com essas obras, um morador da zona leste ou de Osasco estaria em quarenta minutos no Morumbi. De certa forma, esta população, amparada pelas obras do metrô e de trem em construção ou construídas na região, viriam a substituir a mão de obra hoje moradora dessas favelas. Tome nota, a produção do espaço nunca ocorre por acaso. Com o advento da Copa de 2014, muitas obras virão por aí, e maiores serão as ameaças de remoção e maior a repressão sobre a população pobre.
Se quiser acrescentar algo, fique à vontade.
A única política pública eficaz para essa população têm sido a remoção. Cabe ressaltar que os núcleos miseráveis de Paraisópolis, que são o Grotinho e o Grotão, se formaram principalmente pela população removida das favelas Jardim Edite e aquelas localizadas ao largo do córrego Águas Espraiadas, onde hoje se encontra a avenida Roberto Marinho. Dessa região foram removidas aproximadamente 60 mil pessoas. Muitas foram ocupar os mananciais e as periferias mais desestruturadas da metrópole. Outras milhares adensaram essas duas regiões de Paraisópolis. Em nome da construção de uma São Paulo high-tech ao redor da Ponte Estaiada, com edifícios pós-modernos e só permitida para a circulação de veículos, deslocou-se um contingente populacional enorme. Ou seja, as ondas de revolta e violência também são causadas pela inexistência de uma política pública de habitação destinada a atender a população moradora de favelas.
Por um lado, inaugura-se uma Ponte Estaiada, cujo gasto estimado foi de R$ 260 milhões. Por outro, nenhum centavo chegou para as favelas da região com os recursos oriundos das Operações Urbanas. Aprofundando o argumento, vale ressaltar que essas favelas são amparadas por uma série de regulações urbanísticas como o Estatuto da Cidade, o Plano Diretor e as ZEIS (Zona Especial de Interesse Social). No entanto, essas regulações simplesmente não estão sendo cumpridas.
Para terminar, há que se fazer uma investigação detalhada dos atos praticados pela polícia naquela semana de ocupação de Paraisópolis, dado que se multiplicam as denúncias de violências e barbarismos cometidas pela corporação na favela.
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