POr Armando Ignácio Brum
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Pode causar estranheza a um observador menos atento que, com a volta da democracia ao Brasil, à idéia da remoção de favelas seja defendida com tanta veemência hoje em dia. Foi justamente no período mais sóbrio da Ditadura Militar que esta pôde ser executada com tamanha força, a ponto de alterar a vida das mais de 175 mil pessoas que foram removidas (compulsoriamente, na maioria dos casos) e refizeram sua vida em um novo local determinado pelas ‘autoridades’ da época, sem que nenhuma consulta fosse feita a elas, baseada no estigma dos favelados como invasores, marginais, despreparados para a vida urbana...
Estigma que foi construído desde o surgimento da favela, ainda no fim do século 19. ‘Os favelados são negros, são migrantes, são preguiçosos, são ignorantes, são perigosos ...’ Generalizações que revelam a dificuldade de uma cidade que tenta se apresentar com os braços abertos. Que sofre para oferecer cidadania a todos os seus moradores. È mais fácil negá-los, culpá-los, os pobres, por sua situação; afastá-los para onde, supostamente, não poderiam incomodar.
Deste modo, instrumentalizam-se a violência, a Olimpíada ou as chuvas, para defender a remoção destas. Constrói-se um pensamento hegemônico da inviabilidade das favelas e do risco destas para si e para terceiros (sobre as casas de classe média alta na Gávea, no Joá, na Estrada Fróes em Niterói, que sofreram deslizamentos, nada ouvimos das autoridades). As remoções são, então, a única alternativa possível.. Pessoas que estabeleceram seus laços naquela localidade, que têm seus empregos perto, avistam no horizonte nuvens ainda mais ameaçadoras do que as que atingiram o Rio nos dias 5 e 6 de abril de 2010.
A urbanização de favelas é tratada como permissividade por parte do Estado, ao invés de direito dos moradores e dever das prefeituras, previsto na Constituição. O duplipensar transforma o que era um avanço na democracia em retrocesso. Para quem? Quais interesses atuam nisso?
È preciso se perguntar por que das cerca de 11 mil famílias moradoras de favelas que iriam ser ‘realocadas’, conforme anunciado pela Prefeitura do Rio nos primeiros dias do ano, 2500 moram na área da Barra da Tijuca, principalmente nas Várzeas, local que têm recebido inúmeros empreendimentos imobiliários, que, diga-se de passagem, são grandes anunciantes nos jornais que têm pregado a remoção como proposta. Há algo além de coincidência nestes fatos?
No outro extremo, por generosos sentimentos ou talvez imaturidade política, defender a permanência favela in totum, é não apenas querer condenar parte da população ao risco, mas desconhecer o que ocorre dentro das favelas e na vida das pessoas que nelas moram. Uma das principais razões da existência das favelas é a mobilidade social que ela permite ao oferecer uma alternativa de moradia ‘barata’ num mercado imobiliário caro e inviável para a maior parte da população como têm sido o carioca, que permite o acúmulo de capital a ser investido na compra de uma moradia própria.
Não é difícil vermos, em alguma cobertura de um confronto entre policiais e bandidos numa favela, aqueles que, diferentes dos repórteres e policiais que se abrigam, andam calmamente pelas ruas em meio ao intenso tiroteio. Aquele que nunca viu respeitado seu direito de cidadão, que só contou até hoje consigo mesmo e com a sorte, desenvolve um fatalismo que não podemos corroborar. E, da mesma forma, não vê legitimidade em qualquer autoridade que lhe alertar sobre o risco que corre. Na década de 1960, os moradores da extinta Praia do Pinto, no Leblon, ouviram que o terreno da favela era ‘inurbanizável’, daí a remoção da favela, que acabou dando lugar a vários prédios. E não há muito tempo, o secretário de Segurança do Rio hierarquizava em entrevista os efeitos de um tiro em Copacabana e numa favela.
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