sexta-feira, 18 de julho de 2008

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Um mundo mais rico, porém com menos empregos
O trabalho de crianças e adolescentes menores de 16 anos*
por . - publicado em 17/01/2007

Por que um capítulo sobre o trabalho de crianças e jovens adolescentes, menores de dezesseis anos, se ele é proibido por lei, é fiscalizado e punido por órgãos federais, estaduais e municipais, denunciado por organizações não-governamentais, restringido por entidades empresariais e combatido por sindicatos e centrais sindicais? Por que tratar esse tema num livro sobre o trabalho, se entidades internacionais organizam programas para sua erradicação?

Aparentemente, há um consenso social definindo que a infância e a primeira fase da adolescência não são etapas da vida para se trabalhar e que devem ser dedicadas ao estudo e à brincadeira, duas atividades reconhecidas como necessárias ao desenvolvimento do ser humano.

No entanto, crianças e jovens adolescentes continuam trabalhando no Brasil e em outras partes do mundo. E não são dois ou três casos excepcionais.No Brasil, de 3 a 4 milhões de crianças, algumas vezes antes dos cinco anos de idade, e jovens adolescentes passam uma boa parte de sua infância e os primeiros anos da adolescência presos a atividades que, mesmo quando não têm caráter penoso, perigoso ou insalubre, deixam seqüelas para o resto da vida.

Nesse início do século XXI, só se pode pensar o trabalho de crianças e jovens adolescentes como trabalho subordinado à lógica do capital, ou seja, como utilização de força de trabalho nos mesmos moldes da mão-de-obra de adultos. Mais ainda, o trabalho na infância e na primeira fase da adolescência não é, e na verdade nunca foi, uma excrescência nas sociedades capitalistas. Pelo contrário, aparece desde os primórdios da história do capitalismo e tem, ao longo do tempo, encontrado diferentes meios de legitimação social. Foi somente em virtude da luta de trabalhadores adultos que o trabalho de crianças e, depois, de jovens adolescentes foi sendo, aos poucos, restringido, protegido, fiscalizado e, finalmente, proibido.

Portanto, não se vai tratar aqui de trabalho em sociedades tribais, por exemplo, onde essa atividade é, muitas vezes, parte da socialização da criança e, como tal, um modo de inclusão social. O enfoque abordado é o do trabalho como única forma de sobrevivência e que, exercido na infância e nos primeiros anos da adolescência, acaba por aprofundar desigualdades sociais, podendo tornar-se causa e instrumento de exclusão na idade adulta.

Outro cuidado necessário é a não utilização do termo trabalho infantil. Infantil é um adjetivo que denota aquilo que é próprio ou adequado à infância: cantigas infantis, roupa infantil, comportamento infantil. Não existe trabalho que possa ser chamado de infantil, porque o trabalho não é uma atividade própria ou adequada a crianças e jovens adolescentes que vivem no século XXI.

Pelo mesmo motivo, não se deve distinguir piores formas de trabalho infantil de outras formas de trabalho na infância como faz a recente Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho. Todo trabalho de crianças e jovens adolescentes é prejudicial ao futuro adulto e, portanto, é um problema, em si. Não deve ser tratado como resposta a uma necessidade ou mesmo solução para graves questões que enfrentam muitas sociedades nos dias de hoje, como, por exemplo, a geração de renda. Isso não quer dizer que não se deva combater, no curtíssimo prazo, o trabalho em situações de risco, aquele que mata, mutila, aleija. Pelo contrário, esse trabalho deve ser erradicado imediatamente. Mas não se pode achar que, com isso, está resolvida a questão do trabalho de crianças e jovens adolescentes, deixando-se para discutir depois, e com menos ênfase, outras atividades que também mutilam e aleijam, física, psicológica, intelectual e socialmente no médio e longo prazo. Uma criança ou jovem adolescente fora da escola, uma criança ou jovem adolescente que não tem tempo para brincar é uma pessoa prejudicada em seu desenvolvimento e será um adulto com dificuldades, provavelmente, para o resto da vida. Hoje, quando a educação é parte fundamental da preparação para a vida adulta, essa é a realidade.

O Brasil e os países onde crianças e jovens adolescentes ainda trabalham precisam levar em conta as conseqüências dessa atividade não só para cada um destes pequenos trabalhadores, mas para o país e, no limite, para a humanidade como um todo.

Ao contrário dos outros capítulos deste livro, que têm como objetivo, ao mostrar a situação do trabalho no país, subsidiar ações que possam torná-lo bem remunerado, gratificante, enfim um instrumento de construção de um mundo digno da condição humana, este capítulo sobre crianças e jovens adolescentes trabalhadores não visa ao cumprimento da legislação trabalhista ou mesmo à melhoria de suas condições de trabalho. Busca, isto sim, em primeiro lugar, mostrar sua abrangência, verificar que sua ocorrência não se restringe a exceções ou a casos isolados. Mais que isso, porém, procura-se, ao divulgar as condições em que é exercido, apontando algumas de suas causas e as conseqüências nefastas para a criança, o jovem adolescente e o futuro adulto, provocar uma reflexão social que possa levar a sua erradicação.

LEGISLAÇÃO E PROTEÇÃO

No Brasil, como também em muitos outros países, a tendência nos últimos cem anos tem sido o aumento da proteção à infância e à adolescência, o que inclui leis que regulamentam e, no limite, proíbem o trabalho nesta fase da vida.

Nos primeiros tempos da República brasileira, em 1891, um Decreto- Lei regularizava idade mínima e jornada máxima para o trabalho em fábricas que, em 1917, passam a ser de catorze anos e seis horas diárias, respectivamente. Dez anos mais tarde, o Brasil consolida seu primeiro Código de Menores. O Serviço de Assistência ao Menor - SAM - é criado em 1941 e, em 1964, surge a Fundação de Bem-Estar do Menor - FUNABEM. Em1979, é elaborado e entraemvigência o último Código de Menores brasileiro. Essas entidades e instrumentos legais tinham como alvo a criança e o adolescente que, de uma maneira ou de outra, estavam em situação irregular perante a lei.Emoutras palavras, até recentemente só havia legislação para os casos excepcionais, ficando as outras crianças e adolescentes sem qualquer referência ou proteção legais específicas.

Essa situação começa a mudar com as discussões que precederam a promulgação da Constituição de 1988. A sociedade brasileira inicia uma discussão sobre a infância e adolescência, através de grupos preocupados com os direitos da criança. Cria-se, em março de 1988, o Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente - Fórum DCA -, com o objetivo de levar à Assembléia Constituinte, de forma organizada, uma idéia até então inédita no Brasil: o combate à violência estrutural e cotidiana contra a infância e a adolescência, por meio de mecanismos institucionais.

A conseqüência mais importante, naquele momento, foi a Assembléia Nacional Constituinte ter sido grandemente influenciada por duas campanhas: "Criança Constituinte" e "Criança Prioridade Nacional". Como resultado imediato, deu-se a aprovação do artigo 227 da Constituição Federal, em cujo caput se determina:

Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Ainda na Constituição de 1988, o artigo 7º, inciso XXXIII, determina "proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos menores de dezoito anos e de qualquer trabalho a menores de quatorze anos, salvo na condição de aprendiz".

O Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA - aprovado em 1990 é, ainda hoje, o mais completo código relativo aos direitos da infância e adolescência elaborado no Brasil, sendo considerado um dos mais abrangentes do mundo, em virtude de adotar como princípio a Doutrina de Proteção Integral, que tem como objetivo integrar direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais da criança e do adolescente.

É no contexto da Constituição de 1988 e do ECA que se elimina a dupla referência a pessoas com menos de dezoito anos, habitual até então. Ou seja, o discurso oficial não mais utiliza o termo menor para designar infratores e, por generalização preconceituosa, crianças pobres, mas todos são, até os dezoito anos, igualmente chamados de crianças e adolescentes.

Como órgãos de atuação e fiscalização do ECA foram criados, no Ministério da Justiça, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - Conanda - e, nos estados e municípios, os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e os Conselhos Tutelares.

O Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil - PETI - é outro mecanismo institucional destinado a proteger o direito à infância. Instalado em novembro de 1994, coordenado pelo Ministério do Trabalho e do Emprego, apoiado pela OIT e pelo Unicef, o fórum reúne mais de quarenta entidades governamentais e não-governamentais com o objetivo de combater o trabalho de crianças, integrando ações, projetos e programas. Nesse sentido, foi criado o PAI - Programa de Ação Integrada - como instrumento para mobilizar e articular iniciativas, elaborar estudos e pesquisas, estabelecer planejamentos estratégicos, identificar recursos financeiros, enfim, viabilizar os objetivos do fórum.

Em 1998, a Emenda Constitucional Nº 20 aumentou a idade mínima para início do trabalho de 14 para 16 anos, completando o atual quadro institucional com relação à criança e ao adolescente que a Constituição de 1988 e o ECA inauguraram.

No plano internacional, a Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança foi o primeiro documento de defesa da infância, já em 1924. Entretanto, é só em 1959 que a Organização das Nações Unidas (ONU) elabora a Declaração dos Direitos da Criança. Trinta anos depois, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças consagra a Doutrina de Proteção Integral. A OIT, por sua vez, vem estabelecendo, ao longo dos últimos oitenta anos, algumas restrições ao trabalho de crianças, através de suas convenções.

No mês de outubro de 1999, o governo brasileiro enviou ao Congresso Nacional, para sua apreciação, a Convenção 138 de 1973 e a Convenção 182 de 1999, ambas da OIT, tratando do trabalho de crianças e jovens adolescentes. Essas convenções já foram assinadas pelo governo brasileiro, mas sua ratificação depende da aprovação de lei interna pelo Congresso Nacional. A Convenção 138 proíbe todo e qualquer trabalho até os quinze anos. A Convenção 182 prioriza o combate ao que chama de piores formas de trabalho infantil.

Apesar de a legislação procurar proteger a criança e o adolescente, há uma grande distância entre o que diz a lei e a realidade observada. Crianças e jovens adolescentes continuam trabalhando no Brasil e, com isso, trocando a infância e a primeira fase da adolescência pela sobrevivência imediata, em flagrante desobediência ao estabelecido pelos instrumentos e mecanismos institucionais, internos e externos. É claro que não se trata de desobediência individual, mas de um processo social que obriga famílias pobres a utilizar o trabalho de todos os seus membros como estratégia de sobrevivência, o que leva, no limite, crianças e jovens adolescentes a trabalhar antes da idade permitida por lei.

O TRABALHO DE CRIANÇAS E JOVENS ADOLESCENTES NO BRASIL

Os grandes números relativos ao trabalho de crianças e jovens adolescentes no Brasil têm uma característica especial, que é tratar de uma atividade ilegal e, como tal, muitas vezes, clandestina. Assim, embora as pesquisas nacionais, regionais e metropolitanas sobre ocupação e desemprego incluam crianças e adolescentes com menos de dezesseis anos em seus levantamentos, nada garante um retrato fiel da realidade desse trabalho já que, em alguns casos, procura-se esconder exatamente o que está sendo pesquisado.

Uma dificuldade adicional ainda presente em algumas estatísticas sobre crianças e jovens adolescentes trabalhadores, em todo o Brasil, é o fato da PNAD/99 não considerar, em sua distribuição etária, a nova legislação brasileira que permite o trabalho apenas a partir dos 16 anos. Assim, os dados referentes à faixa de 15 a 17 anos, da forma como são divulgados pela PNAD, incluem, ao mesmo tempo, trabalho legal e ilegal, o que inviabiliza, para este grupo, o corte analítico segundo a lei. Este corte no entanto, é possível ser feito ao se utilizar a PED - Pesquisa de Emprego e Desemprego realizada pelo DIEESE e SEADE, em conjunto com entidades estaduais. Neste caso, porém, a dificuldade fica por conta destes levantamentos não apresentarem dados sobre crianças trabalhadoras antes dos 10 anos - sua referência é a População em Idade Ativa - PIA - que é a população com 10 anos ou mais. Esse procedimento deixa de fora um grupo expressivo de crianças que trabalham.

Assim, esses dados indicam um subdimensionamento do número de crianças e adolescentes com menos de 16 anos trabalhando. Mesmo assim, podem fornecer um sinalizador significativo do problema existente no país, e por isso são aqui considerados.

A PNAD encontrou, em 1999, 2.908.341 crianças e jovens adolescentes ocupados entre 5 e 14 anos, sem considerar as populações rurais dos estados de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá. Nem todas as crianças e jovens adolescentes que trabalham ilegalmente estão aí incluídas, não apenas pela restrição à área rural da Região Norte, mas por não serem considerados os adolescentes com 15 anos, que também exercem uma atividade legalmente proibida. Mesmo assim, estabelece indício da grandeza desta questão no Brasil, que atinge pelo menos 2 milhões e 900 mil crianças e jovens adolescentes entre cinco e catorze anos.

Assim, segundo o universo pesquisado pela PNAD, 8,97% das crianças e jovens adolescentes brasileiros entre 5 e 14 anos trabalham. Ainda, de acordo com a PNAD/99, 65% deles estão ocupados em atividades agrícolas e 35% em atividades não agrícolas.

Pelos dados da PNAD/99, 62% das crianças com idade entre 10 e 14 anos que trabalham, o fazem sem obter remuneração em dinheiro. Além disso, 5% das crianças e adolescentes trabalham em emprego doméstico e outros 17% são empregados, enquanto 5,1% exercem atividades por conta própria.



*Artigo do livro A situação do trabalho no Brasil, do DIEESE.

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