quarta-feira, 5 de maio de 2010

*Coluna no GLOBO: MIRIAM LEITAO*

*Contra os fatos*
* *
[ 3setor ] Fwd: CONTRA OS FATOS. comentario de Miriam Leitao,sobre as posiçoes da senadora da arena KATIA ABREU jornal o Globo, 02 de maio,

A empresa tem que fornecer água potável para os trabalhadores. Essa é uma
das 252 normas do Ministério do Trabalho para as fazendas. Por que escrever
uma exigência óbvia? *Entre 2003 a 2008, em 451 fazendas ficou constatado
que os trabalhadores não tinham acesso à á*gua minimamente aceitável. Há
regras que não precisariam ser escritas desde o fim das senzalas.
Exemplos de regras espantosamente básicas: é preciso haver banheiro nos
alojamentos; água para lavar o agrotóxico das mãos antes das refeições; os
alojamentos têm que ser divididos por sexo; alojamentos de famílias não
podem ser coletivos; trabalhador não pode pagar pelo equipamento de
trabalho; se sofrer acidente, tem que receber primeiros socorros. Não
deveria existir instruções assim tão detalhistas. O normal é que não
houvesse. Mas os relatórios dos grupos móveis de fiscalização, que foram a
quase 1.800 fazendas desde 2003, mostram que o que deveria ser normal numa
sociedade civilizada, nem sempre é oferecido ao trabalhador de certas
propriedades rurais.
A senadora Kátia Abreu (DEM-TO), presidente da Confederação Nacional da
Agricultura (CNA), disse à “Veja” que é impossível cumprir essa lista de 252
itens, conhecida como NR-31. Sugeriu que o descumprimento de qualquer dessas
normas levaria a empresa rural a ser enquadrada por praticar o crime. Citou
como exemplo de distorções o impedimento de que o trabalhador cuide do gado,
depois das galinhas e depois limpe o pasto.
Quem acompanha o tema tem dificuldade de entender a senadora, ou de
encontrar o nexo entre o que ela diz e os fatos. Primeiro, a Norma
Regulamentadora 31 foi discutida, durante quatro anos, por uma comissão
tripartite da qual a CNA participou; segundo, o que configura o trabalho
escravo ou degradante é o artigo 149 do Código Penal e não essa instrução;
terceiro, não há na lista nada que impeça que um trabalhador tenha várias
funções na fazenda.
Até 2003, o artigo do Código Penal que condenava o trabalho análogo à
escravidão era genérico, e isso favorecia as fazendas irregulares. Mas o
*Congresso alterou o texto — com voto contrário da então deputada Kátia
Abreu*. O Código, agora, descreve quatro condutas que configuram o crime
de reduzir alguém à condição análoga à de escravo: trabalho forçado;
servidão por dívida; jornada exaustiva; trabalho degradante.
A senadora reclama dessas normas dizendo que elas são fruto de
preconceito ideológico contra a propriedade privada. Na verdade, não parecem
ser contra o capitalismo, mas sim a favor do trabalho assalariado e, com
garantias e direitos, que é da natureza do próprio capitalismo. Não cumprir
essas regras seria restituir uma ordem medieval do trabalho.
Só uma minoria das empresas é encontrada com trabalho escravo, mas os
casos não deixam dúvidas de que o país não está diante de uma picuinha de
fiscais preconceituosos, ou de normatização compulsiva do governo. Os
flagrantes são repulsivos. E o Ministério do Trabalho admite que só se fixa
em 30% daquelas normas, as que são mais elementares.
Em 2005, a destilaria Gameleira, em Mato Grosso, foi autuada com mil
trabalhadores com salários atrasados, em condições de moradia e alimentação
inaceitáveis. A empresa foi autuada quatro vezes pelo mesmo crime. Não mudou
de conduta, mas mudou de nome. Em julho de 2007, 1.064 trabalhadores foram
encontrados na fazenda Pagrisa, no Pará, em alojamentos superlotados, esgoto
a céu aberto, salário com descontos de remédios ao preço seis vezes mais
alto que nas farmácias da cidade, e água de beber “da cor de caldo de
feijão”, como diz o relatório. No dia 13 de novembro de 2007, os fiscais
encontraram 820 índios trabalhando numa das sete fazendas do grupo José
Pessoa de Queiroz Bisneto, em Brasilândia, Mato Grosso do Sul. Eles
trabalhavam com agrotóxico e depois comiam, sob o sol, sem ter, ao menos,
água para retirar o produto das mãos. Entre várias cenas grotescas, os
fiscais encontraram os trabalhadores amontoados em alojamentos mínimos. Em
um deles, eram 20 pessoas em 26 metros quadrados. Em abril de 2010, em
Aragarças, Goiás, 143 cortadores de cana vindos de vários estados eram
obrigados a pagar pela comida e habitação, dormiam em barracos, e foram
pagos com cheques sem fundo, não tinham repouso remunerado.
*Ao todo, de 2003 para 2009, foram encontrados 30 mil trabalhadores em
condições análogas às da escravidão nas fazendas inspecionadas. Uma minoria
é autuada.* Outras são simplesmente advertidas ou orientadas sobre o
cumprimento da lei. Nestas, em geral a fiscalização depois encontra tudo
resolvido. A dúvida é: se não houvesse a fiscalização, elas mudariam a
atitude? No caso de J. Pessoa de Queiroz Bisneto, no dia seguinte à operação
ele me contou que tinha contratado banheiros químicos para os trabalhadores,
instalado local com sombra para eles almoçarem e garantiu que reformaria os
alojamentos.
A senadora sabe que o problema existe. Algumas dessas fazendas, como a
Pagrisa, ela até visitou para prestar solidariedade aos proprietários. A
melhor defesa dos produtores rurais seria separar a minoria criminosa e
lutar contra essa prática. Em vez disso, a líder ruralista ataca as
exigências feitas pela fiscalização. Com ações assim, ela acabará
convencendo o país que os empresários rurais são todos iguais. Se a CNA
quiser falar sério sobre modernização, tem que começar desistindo de lutar
no Supremo contra a lista que informa quem são as empresas criminosas.

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