Cuidam-se os autos de ação de obrigação de fazer manejada por .... alegando o autor fatos precedentes ....
ocorridos no interior do prédio que o levaram a pedir que fosse
tratado formalmente de "senhor".
Disse o requerente que sofreu danos, e que esperava a procedência do
pedido inicial para dar a ele autor e suas visitas o tratamento de
"Doutor", "senhor", "Doutora", "senhora", sob pena de multa diária a
ser fixada judicialmente, bem como requereu a condenação dos réus em
dano moral não inferior a 100 salários mínimos. (...)
DECIDO. "O problema do fundamento de um direito apresenta-se
diferentemente conforme se trate de buscar o fundamento de um direito
que se tem ou de um direito que se gostaria de ter." (Noberto Bobbio,
in "A Era dos Direitos", Editora Campus, pg. 15).
Trata-se o autor de Juiz digno, merecendo todo o respeito deste
sentenciante e de todas as demais pessoas da sociedade, não se
justificando tamanha publicidade que tomou este processo. Agiu o
requerente como jurisdicionado, na crença de seu direito. Plausível
sua conduta, na medida em que atribuiu ao Estado a solução do
conflito. Não deseja o ilustre Juiz tola bajulice, nem esta ação pode
ter conotação de incompreensível futilidade. O cerne do inconformismo
é de cunho eminentemente subjetivo, e ninguém, a não ser o próprio
autor, sente tal dor, e este sentenciante bem compreende o que tanto
incomoda o probo Requerente.
Está claro que não quer, nem nunca quis o autor, impor medo de
autoridade, ou que lhe dediquem cumprimento laudatório, posto que é
homem de notada grandeza e virtude. Entretanto, entendo que não lhe
assiste razão jurídica na pretensão deduzida.
"Doutor" não é forma de tratamento, e sim título acadêmico utilizado
apenas quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga merecedora
de um doutoramento. Emprega-se apenas às pessoas que tenham tal grau,
e mesmo assim no meio universitário. Constitui-se mera tradição
referir-se a outras pessoas de "doutor", sem o ser, e fora do meio
acadêmico. Daí a expressão doutor honoris causa - para a honra -, que
se trata de título conferido por uma universidade à guisa de homenagem
a determinada pessoa, sem submetê-la a exame. Por outro lado, vale
lembrar que "professor" e "mestre" são títulos exclusivos dos que se
dedicam ao magistério, após concluído o curso de mestrado. Embora a
expressão "senhor" confira a desejada formalidade às comunicações -
não é pronome -, e possa até o autor aspirar distanciamento em relação
a qualquer pessoa, afastando intimidades, não existe regra legal que
imponha obrigação ao empregado do condomínio a ele assim se referir. O
empregado que se refere ao autor por "você", pode estar sendo cortês,
posto que "você" não é pronome depreciativo. Isso é formalidade,
decorrente do estilo de fala, sem quebra de hierarquia ou incidência
de insubordinação.
Fala-se segundo sua classe social.
O brasileiro tem tendência na variedade coloquial relaxada, em
especial a classe "semi-culta" , que sequer se importa com isso. Na
verdade "você" é variante - contração da alocução - do tratamento
respeitoso "Vossa Mercê".
A professora de linguística Eliana Pitombo Teixeira ensina que os
textos literários que apresentam altas freqüências do pronome "você",
devem ser classificados como formais. Em qualquer lugar desse país, é
usual as pessoas serem chamadas de "seu" ou "dona", e isso é
tratamento formal.
Em recente pesquisa universitária, constatou-se que o simples uso do
nome da pessoa substitui o senhor/ a senhora e você quando usados como
prenome, isso porque soa como pejorativo tratamento diferente. Na
edição promovida por Jorge Amado "Crônica de Viver Baiano
Seiscentista" , nos poemas de Gregório de Matos, destacou o escritor
que Miércio Táti anotara que "você" é tratamento cerimonioso. (Rio de
Janeiro/São Paulo, Record, 1999).
Urge ressaltar que tratamento cerimonioso é reservado a círculos
fechados da diplomacia, clero, governo, judiciário e meio acadêmico,
como já se disse. A própria Presidência da República fez publicar
Manual de Redação instituindo o protocolo interno entre os demais
Poderes. Mas na relação social não há ritual litúrgico a ser
obedecido. Por isso que se diz que a alternância de "você" e "senhor"
traduz-se numa questão sociolingüística, de difícil equação num país
como o Brasil de várias influências regionais.
Ao Judiciário não compete decidir sobre a relação de educação,
etiqueta, cortesia ou coisas do gênero, a ser estabelecida entre o
empregado do condomínio e o condômino, posto que isso é tema interna
corpore daquela própria comunidade. Isto posto, por estar convicto de
que inexiste direito a ser agasalhado, mesmo que lamentando o incômodo
pessoal experimentado pelo ilustre autor, julgo improcedente o pedido
inicial, condenando o postulante no pagamento de custas e honorários
de 10% sobre o valor da causa.
Niterói, 2 de maio de 2005.
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