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Um espectro ronda o MEC
Fonte: Valor Econômico
08/05/2007 - Bastou ser apresentado um conjunto de medidas (o PDE) visando a melhoria da educação pública brasileira para que aqueles que trabalham no setor passassem a ser assombrados por certos espectros: a pretensa "ideologização", o "projeto de poder", o "aparelhismo", o "estatismo" que estariam inexoravelmente subjacentes às propostas do ministro Haddad, particularmente sua correta proposição de estender o alcance das tarefas da Capes - tão bem desempenhadas no âmbito das pós-graduações e do ensino superior - para a urgente implantação de mecanismos ágeis e transparentes de avaliação de desempenho do professorado de educação básica.
Escorrendo de comentários em corredores acadêmicos os espectros materializaram-se nas seções de "Cartas dos Leitores" de jornais de grande circulação e passaram, até, a freqüentar artigos de fundo. Gostaríamos de fornecer alguns argumentos para que um "pacote" de boa qualidade como o ora proposto pelo Ministério da Educação não venha a ser tisnado por interesses não-educacionais. A qualidade do projeto pode ser facilmente aquilatada pelos elogios que recebeu, tanto por parte de educadores sérios como de entidades ou personalidades bem pouco "governistas", como os editores da Folha de S. Paulo, O Estado de São Paulo e de Veja; da Sra. Milú Vilela e do Sr. Antônio Ermírio de Morais, entre muitos outros brasileiros realmente preocupados com a educação no país.
Por vezes, é necessário reafirmar o óbvio: se o governo federal financia grande parte dos dispêndios em educação pública, aí inclusa a remuneração dos docentes, através de repasses obrigatórios a Estados e municípios, é de sua obrigação legal e republicana verificar como se dá o emprego desses recursos e qual a eficácia de sua utilização. Ora, um dos elementos fundamentais para a construção de um sistema educacional público universal e de reconhecida qualidade é que os professores envolvidos tenham ótima e continuada formação, que obtenham e demonstrem capacidade real de ensinar.
Frente a um quadro assustador, em que 30% dos municípios brasileiros têm média igual ou inferior a 2 - e a média nacional é 4 - no cômputo do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Indeb), elaborado pelo INEP (Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), formar bem e avaliar continuamente o professorado é tarefa estratégica, para que alcancemos metas até modestas - média nacional 6 em até 15 anos - como as propostas pelo MEC. Como afirma, corretamente, o Secretário Nacional de Educação Básica do Ministério, é preciso repensar a situação dos professores, já que muitos não têm licenciatura, outros lecionam em áreas que não são a de sua formação e alguns não têm nem mesmo ensino superior adequado.
Muitos professores não têm licenciatura, outros lecionam em áreas longe da onde se formaram e alguns não têm ensino superior
Cumprir esta tarefa democrática, aferindo o desempenho dos docentes através de critérios científicos e mensuráveis, é dotar a sociedade brasileira de conhecimento do "estado da arte" na educação e de base necessária para implantação de políticas públicas de melhoria da capacitação de profissionais, quando for o caso. Onde nisto estão o "estatismo", a "ideologização", o "aparelhismo", o "projeto de poder"?
Em uma segunda abordagem, surgiu uma "defesa" tortuosa das atividades da Capes. Argumentou-se por duas vertentes: uma hipotética perda de qualidade do órgão ao ganhar novas atribuições - daí sugerir-se a criação de novas estruturas governamentais - e um mais hipotético ainda descontrole de gastos, gerado pelo suprimento de recursos humanos adicionais.
São, a nosso ver, duas falácias. A Capes detém conhecimentos, técnicas, massa crítica, para que, com um razoável crescimento de seu corpo funcional, possa fazer frente a esse novo desafio. Ela hoje atende a avaliação do ensino superior com 130 servidores efetivos e 58 cargos em comissão. Para avaliar o ensino básico, que supera em dezenas de vezes o porte dos cursos superiores, demandaria um crescimento de pessoal inferior a três vezes sua estrutura atual, segundo dados divulgados por um dos principais adversários da proposta do MEC. Criar novas estruturas desnecessárias significa, como sabe quem tem um mínimo de conhecimento de gestão, duplicação de esforços, redundância de atividades-meio, perda de sinergia. Defender um gasto racional do MEC implica o aproveitamento do conhecimento já acumulado na Capes e não seu contrário, como se quis fazer crer.
Por que, então, perguntaria o leitor pouco afeito ao tema, tanto insistem na retirada da Capes do processo de avaliação dos professores estaduais e municipais, na contramão do proposto pelo MEC? A mera lógica não leva a rumo contrário? Qual outro espectro ronda o assunto? Encontra-se aí o perigo: diversos Estados e municípios, que não dispõem de estruturas para a implantação de programas próprios de avaliação de mestres, são diuturnamente visitados por representantes de entidades privadas, com ou "sem" fins lucrativos, que se propõem à realização desse trabalho, mediante convênios ou contratos (muito bem) remunerados por recursos públicos. Vários desses entes propagandeiam, como argumento de venda, sua ligação com "grandes nomes" da Educação ou com epígonos da política regional.
Além da dispersão de critérios e da queda de qualidade do processo de avaliação dos professores que certamente viriam, se adotada essa via localista e "de mercado", reforçando negativamente o nível médio de formação docente e a regionalização desigual que afeta nosso sistema nacional de ensino, surge então o verdadeiro espectro que ronda o MEC: a transferência ineficaz e não-transparente de recursos do cidadão para uma pletora de algibeiras privadas que de educacionais pouco ou nada têm.
Sônia Castellar geógrafa, é doutora em Educação pela USP, professora na graduação e pós-graduação daquela universidade e especialista em Educação Pública e Gestão Universitária.
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