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Revista ÉPOCA, 1/12/2008
A JOVEM GUARDA DA JUSTIÇA
Uma nova geração de delegados, promotores e juízes está no comando das investigações mais rumorosas do país
Rodrigo Rangel e Wálter Nunes
Em abril, o advogado Ricardo Tosto trabalhava em seu luxuoso escritório no Itaim, bairro de classe média alta de São Paulo, quando foi surpreendido por policiais federais durante a Operação Santa Teresa. Tosto foi algemado e levado à sede da Polícia Federal, onde ficou dois dias preso, sob a acusação de envolvimento com um esquema milionário de desvio de verbas do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), lavagem de dinheiro e prostituição comandado pelo sindicalista e deputado federal Paulinho da Força (PDT-SP).
Tosto, até então dono de uma prestigiada banca de advocacia com clientes como o ex-prefeito e deputado federal Paulo Maluf (PP-SP) e o ex-ministro José Dirceu, foi parar atrás das grades graças à atuação de dois jovens de 29 anos: o delegado Rodrigo Levin, da PF, comandante da investigação, e o juiz federal Márcio Catapani, responsável pela assinatura do mandado de prisão. Na ocasião, surpreendidos com a pouca idade dos algozes de Tosto, seus defensores fizeram comentários desairosos sobre a juventude do delegado e do juiz. Diziam que eles ainda carregavam no rosto marcas das espinhas da adolescência e não teriam o equilíbrio e a ponderação necessários para comandar casos de tão grande repercussão.
A investigação comandada por Levin rendeu na semana passada a abertura de um processo de cassação de mandato de Paulinho da Força na Câmara dos Deputados. Ela é um fenômeno cada vez mais corriqueiro. Nas mãos de uma turma jovem, com idade entre 25 e 35 anos, que ainda estava nos bancos da escola fundamental na transição do regime militar para a democracia e no impeachment do ex-presidente Fernando Collor, estão algumas das mais importantes investigações em curso no Brasil. A nova geração gosta de aparentar modernidade. Usa roupas bem cortadas, óculos estilosos e não abre mão das novidades tecnológicas, como celulares que fazem de tudo um pouco. Sente-se atraída por trabalhos complexos na área de combate à corrupção, crimes financeiros e lavagem de dinheiro.
O inquérito mais rumoroso da atualidade – a Operação Satiagraha, que levou à prisão o banqueiro Daniel Dantas e está no centro de uma crise dos órgãos de segurança e inteligência do governo federal – está a cargo do delegado Ricardo Saadi, de apenas 32 anos. Saadi tem hoje a missão de escoimar do inquérito da Satiagraha algumas conclusões excêntricas do delegado Protógenes Queiroz, de 49 anos, a quem substituiu no comando da investigação. Antes de Saadi, quem ocupou as manchetes foi o delegado Luiz Flávio Zampronha, de 34 anos. Zampronha é o responsável pelo inquérito do mensalão, que investigou um esquema de financiamento ilegal montado pelo PT e fez balançar o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No auge do escândalo, em 2005, Zampronha ganhou notoriedade por ter pedido duas vezes a prisão do operador do esquema, o lobista Marcos Valério Fernandes de Souza.
Além da Polícia Federal, essa turma jovem também está no próprio Poder Judiciário e no Ministério Público. Um dos parceiros de Saadi na Operação Satiagraha é o procurador da República Rodrigo de Grandis, de 32 anos. Mas a renovação de quadros é mais perceptível hoje na PF. Por duas razões. A primeira é uma cifra impressionante. Na PF, mais da metade dos delegados da ativa tem hoje entre 25 e 35 anos (leia o quadro acima). O delegado Levin foi admitido aos 23 anos, aprovado em concurso, logo após ter se formado em Direito pela tradicional Faculdade do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP). Hoje, aos 30 anos, em meio a tantos colegas jovens, já se sente um veterano. “Minha matrícula na Polícia Federal é a 9.300. Hoje, já há 17 mil. Já estou na metade mais velha da PF”, diz Levin.
A segunda razão é que a PF demorou mais a entrar no processo de renovação de quadros por que passaram o Ministério Público e o Poder Judiciário, depois da promulgação da Constituição de 1988. Com a nova Constituição, o MP e o Poder Judiciário ganharam novas atribuições, mais autonomia e poder e passaram a atrair jovens qualificados para carreiras mais bem estruturadas e remuneradas. “Depois da Constituição de 1988, milhares de cargos foram criados na Justiça, e centenas de concursos foram feitos”, diz o deputado federal Flávio Dino (PCdoB-MA), juiz federal de carreira. O próprio Dino, hoje com 40 anos, foi o primeiro colocado de todo o país no concurso para juiz federal quando tinha apenas 25. Em 1992, na CPI do PC Farias, que levou ao impeachment de Collor, ficou famosa a atuação dos procuradores da República Italo Fioravante e Odin Ferreira, que, na ocasião, tinham, respectivamente, 31 e 27 anos.
Até recentemente, os delegados federais eram colocados, na hierarquia social, um patamar abaixo em relação a procuradores e juízes. A carreira de delegado só ganhou maior impulso depois da gestão do advogado Márcio Thomaz Bastos no Ministério da Justiça. Ele investiu na ampliação de vagas e na melhoria dos salários. Entre 2000 e 2008, o salário inicial dos delegados da PF aumentou em 71%. No topo da carreira, um delegado da PF ganha hoje R$ 19 mil mensais. Com suas operações de nomes ressonantes e grande repercussão na mídia, a PF conquistou também maior autonomia e status social, apesar das críticas à espetacularização de suas ações. “A remuneração da PF melhorou e está chegando perto do patamar do Ministério Público e da magistratura. As condições de trabalho melhoraram, e a carreira de delegado se tornou mais atraente”, diz a cientista política Maria Tereza Sadek, especialista no estudo do funcionamento da Justiça no Brasil.
O resultado disso é que a PF passou a atrair gente não apenas jovem, mas também com melhor formação acadêmica. Não é difícil encontrar hoje um delegado com cursos de pós-graduação e mestrado. O delegado Ricardo Saadi, da Satiagraha, é formado em Direito e Economia, tem especialização em Processo Civil e mestrado em Direito Político e Econômico. Desde que entrou na PF, em 2002, já participou de diversos cursos em órgãos internacionais, como o FBI (departamento federal de investigação americano) e o DEA (agência antidrogas americana). Representou o país em conferências internacionais na França, Inglaterra, Argentina, Venezuela e no Peru. O procurador Rodrigo de Grandis, um dos maiores especialistas do MP em crimes financeiros (além da Operação Satiagraha, atuou em casos como o da MSI/Corinthians), é fluente em inglês e italiano – isso lhe traz facilidades nos contatos com autoridades de outros países. Fez cursos sobre lavagem de dinheiro nos EUA e diz ter se interessado pelos crimes econômicos porque “eles são os mais graves e atingem várias pessoas”. De Grandis costuma ficar mergulhado até 12 horas por dia em seus processos.
Foi um motivo parecido que atraiu o delegado Zampronha para a área dos crimes de colarinho branco. Ele diz que, quando entrou na polícia, em 1998, não tinha noção do que encontraria pela frente. Na época, o maior foco da PF era o combate ao narcotráfico. Zampronha deixou o trabalho de assessor do Tribunal de Justiça de Goiás para assumir o cargo de delegado no Rio de Janeiro. Sua primeira posição foi na delegacia de combate a crimes previdenciários. Logo veio um caso de repercussão: Zampronha ajudou a desarticular um balcão de venda de aposentadorias ilegais no INSS. Entre os investigados estava um assessor do então ministro do Trabalho, Francisco Dornelles. “É bom saber que você está ajudando a mostrar que todos os que cometem crimes devem responder à Justiça”, diz Zampronha, casado e pai de três filhos.
Essa combatividade e o desassombro em enfrentar poderosos devem ser vistos como uma grande novidade, num país em que a impunidade é um mal historicamente endêmico. “Deposito grande esperança nos delegados da PF, procuradores e magistrados que vêm chegando às suas carreiras, porque eles mantêm a tradição e a renovam”, afirma Thomaz Bastos.
Mas a jovem guarda da justiça também sofre críticas – quase todas relacionadas à impulsividade característica da juventude. Dentro das instituições, há resistência das gerações mais antigas de juízes, procuradores e delegados, que vêem excessos, arrogância e uma predileção pelos holofotes da mídia na atuação dos calças-curtas, como costumam ser chamados os mais novos integrantes das carreiras. Essas críticas são mais abertamente expressas pelos advogados. “É preciso compreender que julgar, opinar e decidir sobre a vida alheia exige experiência pessoal, e não apenas o saber formal”, diz Cezar Britto, presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). “Só passa nos concursos mais rígidos, como de juiz e procurador, quem se dedica quase integralmente à tarefa. O reflexo disso é que as carreiras são preenchidas por pessoas com grande saber formal, mas pouca experiência prática. Tem-se, então, uma geração criada fora das ruas e dentro de prédios.”
A OAB defende mudanças nas regras para admitir juízes, promotores e procuradores. Sugere medidas para privilegiar a experiência. “O foco do combate à corrupção é correto, mas não pode ser feito a qualquer preço”, diz Britto. “Há que preservar os direitos individuais.” No Congresso, tramita desde junho uma proposta de emenda constitucional que estabelece em 35 anos a idade mínima para as carreiras da Justiça e Ministério Público. A proposta, de autoria do deputado Décio Lima (PT-SC), prevê ainda que os interessados tenham, no mínimo, dez anos de serviço na advocacia. Ela está sob análise da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.
“Essa proposta é contra o sistema constitucional”, diz o deputado Flávio Dino. “Se um jovem de 30 anos pode governar um Estado, por que não pode participar de um caso importante?” No Supremo Tribunal Federal (STF), a idéia também é vista com ceticismo. “Não há qualquer risco para a sociedade em termos profissionais despreparados, em razão de sua relativa juventude”, diz o ministro Ricardo Lewandowski, do STF. Lewandowski lembra que as decisões estão sujeitas a fiscalização de corregedorias e dos Conselhos de Justiça do Ministério Público. Por causa das resistências, podem-se prever dificuldades para o avanço da proposta do deputado Lima. Mas, com o poder adquirido pela nova geração da Justiça, a questão suscitada por ela, tão velha quanto a humanidade, deve permanecer: como conciliar o entusiasmo e a combatividade da juventude com a maturidade – só adquirida com a experiência?
Rodrigo Levin
Idade: 30 anos
Cargo: delegado da Polícia Federal
Especialização: tráfico de drogas e crimes econômicos
Casos importantes: Operação Santa Teresa, que desvendou um esquema de desvio de verbas públicas, lavagem de dinheiro e prostituição
Ricardo Saadi
Idade: 32 anos
Cargo: delegado da Polícia Federal
Especialização: crimes contra o sistema financeiro
Casos importantes: investigou o Banco Santos, MSI/Corinthians, o banqueiro Daniel Dantas e o traficante Juan Carlos Abadia
Luiz Flávio Zampronha
Idade: 34 anos
Cargo: delegado da Polícia Federal
Especialização: crimes contra o sistema financeiro
Casos importantes: investigações sobre fraudes no INSS e o caso do mensalão
Rodrigo de Grandis
Idade: 32 anos
Cargo: procurador da República
Especialização: crimes contra o sistema financeiro
Casos importantes: denunciou o ex-prefeito Paulo Maluf, o banqueiro Daniel Dantas e o ex-presidente do Corinthians Alberto Dualib
Márcio Catapani
Idade: 29 anos
Cargo: juiz federal
Especialização: crimes contra o sistema financeiro
Casos importantes: decretou a prisão do advogado Ricardo Tosto, acusado de liderar esquema de desvio de verbas públicas no BNDES.
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